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MET Gala é um museu a céu aberto


Não sei muita coisa sobre o MET Gala em si - exceto o que fora legalmente aprovado a ser demonstrado no filme Oito Mulheres e um Segredo (grande evento cinematográfico). Por falar em ótimos filmes, tenho certeza que um Diabo Veste Prada 2 abordaria o mais caótico evento da temporada, com Emily beirando um ataque do pânico e Andrea assistindo pela TV, se achando tão melhor do que tudo aquilo. Sei tão pouco, que até pouco tempo (ontem), eu realmente acreditava que aquelas pessoas eram convidadas a estar ali, pela própria Anna Wintour - alguém que eu suponho ter apenas seu nome atrelado a tudo, sem de fato decidir nada (preces e orações aos estagiários da Vogue). O que Anna decide por si, na verdade, é quem ela gostaria de ver de longe num lance de escadas, o filtro sendo famosos com os quais ela vai com a cara ou não, um trabalho deveras exaustivo. Caso selecionado, sua entrada é confirmada mediante PAGAMENTO (sim). 

O ingresso custa cerca de um 1kg de carne coxão mole aqui no Brasil (30 mil dólares). A não ser que, é claro, o artista seja selecionado a dedo por grandes marcas para entrar como modelo da própria grife, uma propaganda em troca de uma mesa com tudo pago, como uma vitrine humana da Versace - assim como a Pfizer propôs ao Bolsonaro. Mas isso, é claro, é reservado para artistas classe A, famosos que a mídia de fato Quer Ver -  o que me faz acreditar que as Kardashians/Jenners nunca pagaram um ingresso na vida, e isso não faz o menor sentido, assim como rico ganhando coisa de graça depois de ficar rico. 

Mas já estabelecemos que nesse blog nós não gostamos muito de falar de artistas classe A, nosso favoritismo sendo entregar furos de Classe C. Uma classe que tanto sofre, e que ainda tem de pagar ingresso de 30 mil dólares - fora roupa, maquiagem, passagens e jóias, um esforço subordinado apenas àqueles que não são importantes o suficiente para entrar nos melhores amigos da Anna Wintour. 

Aparentemente todo o dinheiro arrecadado é utilizado como fundos para o departamento de vestuário do Metropolitan Museum, o que, cá pra nós, me parece uma conversa fiada de um evento que UM DIA foi um baile beneficente e pareceu legal o suficiente para se tornar anual. Afinal, o MET não é conhecido pelo seu sucateamento e necessidade de constantes reformas, e, mesmo que fosse, ainda dava pra sobreviver com o valor meia entrada do ingresso atual. 

O que acontece lá dentro é misterioso como o verdadeiro propósito da maçonaria, ou no que consiste o fim de semana de um EJC (Encontro de Jovens com Cristo). Vez ou outra recebemos pequenos detalhes do que tá rolando (foto de prato de comida horrível, vídeo de 15 segundos dos anfitriões, cenas montadas em Oito Mulheres...), mas nunca a informação completa. O evento mais exclusivo dos Estados Unidos, nas palavras da própria Debbie Ocean (Sandra Bullock). Sei que em algum ponto tem uma exposição, e sinto pelo curador responsável por ela, porque é óbvio que ninguém liga. A verdadeira curadoria é de looks, no próprio tapete vermelho - um evento em que se paga não necessariamente para entrar, mas sim para posar na entrada. 

O tema deste ano (Na América: Um Léxico da Moda), teve o intuito de celebrar a moda norte-americana, dessa vez dividido em duas partes, para compensar nosso ano que não foi, 2020. Minha opinião pessoal é que o MET Gala sobreviveu tão bem à passagem do tempo porque a expressão artística da moda é uma que não morre. Não só isso, a moda como arte consegue relacionar todas as vertentes anteriores a ela, vide o MET de 2018 que trouxe a influência da Igreja Católica na moda (barroco, idade média) e o MET de 2019, com o tema Camp (dadaísmo, surrealismo). Não importa qual o tema, sempre terá o look que poderia ser a representação pós-contemporânea do mictório de Duchamp em forma de roupa, ou a Capela Sistina de Michelangelo. 

       
Ariana Grande, 2019, por Vera Wang

O que eu mais gosto de acompanhar na timeline numa noite de MET Gala é nossa comunhão em aceitar que todos nós, automaticamente, nos transformamos em grandes críticos de moda e cultura. Nenhuma opinião é desmerecida, todos nós mantendo nossos cargos na mesa dos jurados que não existem no evento original, mas deveriam, pois tornaria tudo mais divertido. Pra que inventar que o MET precisa de ajudar para manter fundos quando podem transformar todo o evento numa gincana de quem vestiu melhor, quem produziu melhor? Por que não transformar o baile no que ele realmente é, um evento da Capital de Jogos Vorazes? 

O MET não é um evento em que o principal é estar bonito. Você pode estar, porque beleza é um estado de espírito, mas não é esse o ponto. O ponto é essa competição silenciosa entre convidados e o tema estabelecido, como uma festa de Halloween em cidades não conhecidas pela celebração de Halloween, cuja melhor fantasia recebe um prêmio de 100 reais no final da noite. É sempre satisfatório esbarrar em alguém que entregou compreensão do tema e beleza, como uma redação bem estruturada do ENEM - mas é sempre mais divertido ler umas receitas de miojo.     

Desejo vida longa a todas as equipes que trabalharam e estruturaram um conceito para todos os looks a fim de abraçar o tema de 2021, já que do lado de cá a proposta de uma homenagem à moda americana me entrega uma infinita tela branca. O óbvio me ganhou pela falta de ideia própria, e por isso que, num primeiro momento, meus favoritos do tapete vermelho foram os mais clichês e mais fáceis de deduzir a ideia por trás - a arte clássica, quando o significado era o que estava em tela e nada mais. Isto é uma pintura de uma mulher, uma Madonna, e não tem muito o que desvendar além disso. Esta é uma pintura de Napoleão, e o propósito era ter uma figura de Napoleão. Às vezes a arte é só o que ela se propõe a entregar, plano, simples e óbvio, sem uma grande tese por trás. Eu consigo compreender a inspiração na Marilyn Monroe, na atmosfera vintage dos anos 70 e da óbvia presença do jeans na cultura americana, e a referência à Audrey Hepburn em My Fair Lady - o que não é muito difícil, todo mundo sabe quem é a Monalisa. 

Billie Eilish veste Oscar de la Renta
Ben Platt veste Christian Cowan
Kendall Jenner veste Givenchy


Não significa que é entediante, ou que tem menos valor - só significa que é algo feito para bater o olho e saber. E tá tudo bem, arte assim é uma delícia também, como um filme de sessão da tarde: algo mais agradável para uma sonequinha pós almoço do que bater cabeça com clássicos franceses numa quarta-feira. 

A moda é uma expressão artística extraordinária, não só por comunicar quem gostaríamos de ser, mas por conseguir atravessar todas as linhas do tempo de sua própria evolução num evento só. Se não fosse assim, todos os vestidos seriam uma homenagem aos anos 20, e o tema teria de ser adaptado para "Festa no Gatsby", a fim de que ninguém passasse vergonha internacional. Interpretação e subjetividade segue sendo nossa mais preciosa ferramenta, e é mágico como nossas mentes pensantes tão limitadamente ilimitadas conseguem criar conceitos do zero, conceitos esses tão bem trabalhados que o propósito não é o resultado em si, mas a execução pensante desse. 

Para mim, é essa a magia da arte pós-moderna, onde a obra de arte não é sobre o resultado ser um ovo cru numa plataforma giratória, mas sim no processo de pensamento do que significaria aquele ovo, naquela plataforma, naquela exposição. (Este é um exemplo real, o ovo cru giratório estava no MASP em 2017). 

Minha piadoca favorita do mundo das artes é aquela em que um estudante esqueceu de entregar o trabalho para exposição e, em desespero, posicionou-se do lado do material de limpeza do faxineiro, numa cadeira quebrada que estava sendo recolhida para manutenção, e sustentou tão bem sua visão para tal instalação que saiu com nota máxima. Muita gente sente vontade de arrancar os cabelos com essa história, seja ela verdade ou mentira. É a mesma gente que olha uma tela abstrata e diz que poderia reproduzir aquilo. 

E isso não é MÁGICO? Para muito além da cadeira quebrada, da lata de lixo, e do ponto de tinta numa tela branca, não é MÁGICO que nosso entendimento e compreensão podem ir além do que o resultado propõe? Não é mágico que possamos viver num mundo em que eu ache um outro conceito para uma cadeira quebrada, além de obviamente ser uma cadeira quebrada? Não é incrível que eu consiga ter habilidades básicas o suficiente de entregar o mesmo ponto colorido numa tela branca, mas com um significado completamente diferente? Vocês não sentem o coração BORBULHAR com todas as possibilidades de intenção e compreensão que o ser humano tem, ou poderia ter? 

Arte pós-moderna, man. Ovos giratórios. Por aqui o efeito é semelhante ao efeito da ida ao banheiro no MET Gala: adrenalina pura, fruto de 3 carreiras de pó milimetricamente dispostos na pia. (O que vocês acham que eles tanto fazem lá dentro? Procurem fotos de artistas com pupilas dilatadas, é divertido). Esse conceito abstrato é minha cocaína. 

CL veste Alexander Wange
Grimes veste Iris Van Herpen
Rihanna veste Balenciaga

O meu casamento com a arte é um que sobrevive aos embates do tempo e da monotonia rotineira pela sua constante tentativa de acolher o ambiente ao seu redor. Afinal, o que é uma nova vanguarda em construção se não for a luta e consolidação do entendimento político-social à sua época? Não tem como desassociar as duas coisas. Uma arte conservadora é uma arte pobre, que não abrange as peculiaridades de compreensão e sensibilidade que o processo artístico exige. Em pouquíssimas situações da minha vida eu consegui me expressar tão claramente quanto pedaços artísticos conseguiram fazer por mim, sem que eu sequer fosse obrigada a usar minhas próprias palavras. 

O que eu devo à arte é isso. É o presente que me fora oferecido, anos atrás, de compreender toda a subjetividade desse universo como uma ferramenta de auxílio para que eu pudesse ser eu, descrita, vista e lida de tantas formas diferentes, mas autênticas. É um sentimento, um que não consigo pontuar ou qualificar - uma inclusão que o meio social falha em oferecer, mas a arte nunca. 

Esses aqui, eu tive que digerir por mais um tempo. Não foi algo óbvio, claro e direto como os 3 primeiros - e nem poderia ser. Expressões artísticas com um subtexto mais complexo geralmente são os últimos a serem esclarecidos - para nós, telespectadores. Para eles, os acessórios entregando a mensagem, essa é clara desde a idéia. 

 

Elliot Page (foto 01) fez sua primeira aparição depois de apresentar-se como Elliot, seu primeiro evento público depois da transição. Vi diversos comentários em que a internet dava passe livre para que o Elliot usasse um terno simples, porque "é o Elliot, e ele é um anjo, então o terno preto simples está perdoado", mesmo que não haja algo que nós, como internet, odiemos mais do que o risório terno preto na noite mais importante da moda. Ainda assim, essa parecia ser a mensagem: incontáveis homens cis não se dão o trabalho de vestir algo além do terno comum. Elliot, um homem trans, se sentiu à vontade de ter sua primeira aparição fazendo o mesmo. Nem me veio à mente o propósito da flor verde na lapela. Até que eu descobri.

Um cravo verde na lapela já fora símbolo de Oscar Wilde, posteriormente de seus amigos e admiradores, transformando-o em algo que se tornou uma silenciosa e secreta ferramenta de identificação da comunidade LGBTQ+ à época. Na noite mais importante da moda, Elliot, pela primeira vez publicamente como Elliot, vestiu um terno simples. Um terno simples que muitos como ele ainda não tem a chance de vestir. E, junto disso, carregou próximo ao peito uma referência direta à Oscar Wilde, um poema condenado e preso por exercício de sua sexualidade. 

Oscar Wilde era conhecido por andar com um cravo verde na lapela - não somente como forma de identificação dentro da comunidade LGBTQ+, mas também pela compreensão de que uma flor com uma cor não-natural poderia ser uma a existir e resistir. Elliot Page não utilizou um cravo verde na lapela, e sim uma rosa verde, e pra mim essa foi a maior poesia da noite. 


"Ele gosta de mim. Sei que gosta. É claro que eu o lisonjeio demais, e sinto um prazer estranho em dizer coisas de que estou certo que vou me arrepender. Como norma, ele é delicado comigo, nós nos sentamos no ateliê e conversamos sobre uma porção de coisas. De vez quando, porém, ele é muito descortês, e parece sentir prazer em me causar dor. Nessas horas, Harry, sinto que sou tratado como uma flor de lapela, uma peça de decoração para deleitar-lhe a vaidade, um ornamento de um dia de verão." (O Retrato de Dorian Gray, Oscar Wilde)

Jeremy Pope (foto 02) compareceu ao MET com uma roupa totalmente de algodão branco, com uma longa calda que transpassava em seu ombro, de modo a parecer uma gigante bolsa tiracolo. Com execução de Dion Lee, a roupa trouxe a memória da influência norte-americana em um tipo de vestimenta que uma noite como essa tenta esconder por baixo dos panos, ocasião em que Jeremy, genialmente, não só vestiu-a como também andou sob o tapete vermelho. A roupa faz alusão direta às vestimentas de pessoas pretas escravizadas nos Estados Unidos, trabalhando forçadamente em plantação de algodão, os longos sacos utilizados na colheita a tiracolo. 

É um lembrete genial de que, muito embora hoje existam celebrações gigantes de moda e cultura a fim de exaltar a história americana, essa história é carregada de herança escravocrata e sangue inocente. Foi essa a roupa e proposta que me deu minha foto favorita de ontem: não nas escadarias, não do evento em si, mas da representação do que pode-se criar para entregar uma mensagem:


Nikkie de Jager (ou Nikkie Tutorials, que surpreendentemente não é um sobrenome) (foto 03) está na internet como guru de beleza desde que eu passei a ter acesso à tecnologia. Foi só recentemente que Nikkie deixou de lado os pincéis de maquiagem pela primeira vez para tratar de um tema que por muitos anos manteve privado: sua transexualidade. Nikkie se viu forçada a tratar sobre o assunto publicamente após receber ameaças que sugeriram revelar "seu segredo" ao mundo, o silêncio custando um preço além de monetário. Nikkie lidou com elegância e honestidade, e escolheu reestabelecer o controle de sua própria história, como deve ser. 

Em um MET Gala que abriu as portas para influencers e tiktokers, Nikkie fez jus à oportunidade de estar ali. Podendo atravessar a escadaria do Met só com um look bem feito e bem montado, Nikkie escolheu permanecer com sua elegância e honestidade de sempre: o belíssimo vestido entregou uma homenagem à Marsha P. Johnson, uma travesti ativista de direitos LGBTQ+ nos Estados Unidos nos anos 60, e uma das principais figuras da Rebelião de Stonewall, marco da revolução e liberação LGBTQ+ em Nova York, ocorrido na data que hoje simboliza e comemora o Dia da Visibilidade LGBTQ+ (28 de junho). 

No corpo do vestido, Nikkie exibe uma faixa com os dizeres "Pay It No Mind". Quando questionada sobre o que significava o "P" em seu nome, Marsha P. Johnson afirmava ser P de "Pay It No Mind". Era sua resposta padrão quando perguntavam se era homem ou mulher. Em tradução livre: "Não Importa".

             

O simbolismo da rosa verde na lapela, da capa que se transforma numa sacola, nas flores e faixa com dizeres políticos, é o que ainda sustenta essa noite como uma noite não somente especial, mas essencial. 

É essencial na manifestação socio-política que parece ser silenciosa quando posta no meio de tantos vestidos da Versace em modelos magérrimas, mas que ainda assim está ali. Essencial na figura do Lewis Hamilton, que comprou uma mesa inteira para convidar e dar espaço a jovens estilistas negros em ascensão, todos vestidos em seu próprio design. 

Analisar as expressões artísticas dos convidados do Met Gala é o evento em si. É de fato como entrar num museu e andar de ala em ala, absorvendo as obras conforme elas se apresentam a você, entrando numa profundidade que te arrasta para uma nova visão além da superfície. 

Todos sabemos quem é a Monalisa, concordamos sobre isso. Mas requer sensibilidade para tentar descobrir o que Da Vinci tentava falar através de pinceladas, e que mensagem a imagem poderia guardar para sempre, sem precisar de palavras.  

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Happier Than Ever e SOUR são, essencialmente, o mesmo álbum

 

Os últimos anos da cena pop musical tem surpreendentemente sido um De Volta Aos Clássicos, o retorno de uma trend esquecida nos anos 2000 como uma calça jeans velha de cintura baixa. Adolescentes nunca pararam de fazer músicas sobre adolescentes, mas a celebração disso se perdeu no tempo, junto com fim da hype dos filmes Crepúsculo, só para voltar agora, na era do streaming e grupos de k-pop. Felizmente, a receptividade dessa cultura por vezes ridicularizada na figura da maior entidade do showbiz (a fangirl), hoje se consolidou em algo que toca tanto no rádio quanto nas trends do TikTok. Não importa o conteúdo ou o meio, ele vai chegar até você. 

Ouvi falar de Billie Eilish pela primeira vez depois da minha própria adolescência, quando ela ainda tomava Leite Ninho para dormir. CATORZE anos era a idade dela, quando a minha já era dezenove, e sempre foi fascinante, mas assustador, conhecer o trabalho profissional de pessoas mais jovens do que eu. Agora já tenho que fazer as pazes com o fato de que todas as novas aparições no universo musical, muito provavelmente, serão mais jovens do que eu - uma lembrança constante do meu próprio fracasso em não conseguir montar minha banda de garagem aos 12. Billie, naquela época, não tinha cabelo verde nem um álbum aclamado pela crítica ainda, mas seu nome constantemente aparecia em playlists e em círculo de amigos que gostavam de ouvir o que ninguém estava ouvindo.

Olivia Rodrigo não teve o privilégio que Billie Eilish teve - de surgir aos poucos, de caminhar lentamente até se estabilizar como um grande nome. Lembro que em algum ponto de 2021 pessoas foram dormir sem saber quem Olivia Rodrigo era, só para acordar no outro dia sem conseguir evitar de aprender a ponte de Drivers License nas primeiras cinco horas do dia, um looping eterno do mesmo vídeo, quando a Internet só falava da mesma coisa. E, por essa música em específico, e pelo instantâneo sucesso que ela teve, planos de EPs foram atualizados para a produção de um álbum inteiro no lugar - o que, honestamente, é genial, do ponto de vista econômico. Billie Eilish, aos 14-15 anos, teve alguns EPs feitos no porão da própria casa para chamar de seu, para integrar playlists de indie alternativo de alguma radfem. Olivia Rodrigo foi arrancada do próprio tecladinho de sua sala de estar para um estúdio de fazer dinheiro - o que é até injusto comparar, porque Olivia não tem um irmão que faz produções musicais num Macbook. Ainda assim ela entregou o SOUR, álbum de maio desse ano, responsável por mantê-la do topo de lista X com números Y etc etc adayada, insira aqui coisas e termos e números e recordes que eu não faço ideia do que significam. 

SOUR tem uma visão bem clara do que deseja (e consegue) passar: o conflito, a insegurança, a incerteza e a chatice da adolescência, quando você já tem consciência que faz tempestade em copo d'água, mas não é maduro o suficiente para racionalizar isso ainda - exceto em música. Foi quando Billie lançou seu segundo álbum (que por muitos é um lançamento amaldiçoado, depois que você ganha um Grammy com o primeiro), Happier Than Ever, que me ocorreu: ambos os álbuns são literalmente sobre as mesmas coisas. O conflito, a insegurança, a incerteza e a chatice, só que vistas em positivo e negativo, o mundo invertido de um Stranger Things musical.

SOUR abre com a que potencialmente é a melhor música do álbum, brutal, milimetricamente calculada para abraçar o momento da vivência de todo jovem em que o único desejo é gritar e falar que tudo é uma merda, quebrar guitarras imaginárias e usar lápis de olho para demonstrar luto espiritual no nosso niilismo adolescente. A música inteira é do ponto de vista de um dia que todos nós já vivemos, quando o café de casa acabou, o ar condicionado da sala de aula pifou, sua melhor amiga não te deu bom dia, você bateu o carro no meio fio ou seu chefe te pediu para ir no dia de folga. É um sentimento que ultrapassa gerações e vivências, muito embora esteja sendo cantado e representado por uma adolescente. A sonoridade remetendo ao pop punk de Avril Lavigne antes de ser substituída é só mais uma prova disso - uma mensagem atemporal, num som nostálgico, gritado por uma voz recente. brutal é a insatisfação com todas as esferas da sua vida, descontando isso no menor dos detalhes para não ter que lidar com a figura geral: eu NÃO sei estacionar um carro, eu NÃO tenho amigos, eu SOU BURRA, eu SOU ANSIOSA, eu QUERO DESAPARECER.  

A música que abre seu álbum-irmão mais novo, Happier Than Ever, grita as mesmas coisas - mas sem gritar. Getting Older começa o álbum com as mesmas perspectivas, as mesmas ansiedades, os mesmos medos, e se atendo aos mesmos minúsculos detalhes da vivência humana - mas o faz num sussurro. Getting Older é uma música de quase um acorde só, sempre no mesmo tom, uma monotonia que só o sentimento de estar completamente estagnado na própria vida pode passar. É até tedioso ouvir as mesmas notas por 4 minutos, até que faz o total sentido ser assim: essa frustração de esperar que algo aconteça na música é exatamente a mesma frustração de esperar que algo mude na sua vida enquanto você reclama dela. Enquanto sua irmã mais velha, brutal, trata das mesmas questões de maneira agressiva e até imatura, tendo que gritar para conseguir ventilar a própria frustração, Getting Older já está tão acostumada com ela que não se dá ao trabalho de desperdiçar mais uma gota sequer de energia. 

Enquanto brutal fala coisas como "tô tão exausta que quero me demitir / pra começar uma vida nova / mas todos vão ficar tão desapontados / porque quem sou eu, se não estou sendo explorada?", Getting Older devolve dizendo "coisas que eu antes gostava / só me mantêm empregada agora / coisas que eu anseio / logo, logo vão me deixar entediada" - o que é uma temática engraçada para tratar em álbuns adolescentes porque O QUE ESSAS GAROTAS SABEM SOBRE EMPREGOS COMUNS? Mas ainda assim. Quando brutal fala que deseja já ter feito isso antes, Getting Older menciona que gostaria de pelo menos saber que estaria fazendo isso sozinha. Quando brutal grita "CARALHO, ESTOU CANSADA DE TER 17 ANOS", Getting Older já inicia dizendo, em um sussurro, que acha que está envelhecendo bem. Ambas se sentem rejeitadas, ambas se sentem incompreendidas, ambas sentem a necessidade de inventar uma personalidade mais interessante e mais divertida do que a realidade - exceto que brutal faz isso com a delicadeza de dois sóis explodindo, e Getting Older faz com uma melancolia de quem já tentou o suficiente para saber quando parar de tentar. 

As duas músicas tem tanto a mesma atmosfera que brutal termina com um suspiro cansado de quem já colocou tudo para fora sem nem atingir a ponta do iceberg: Meu Deus, nem sei por onde começar... é a frase que dá o pontapé inicial na porta de sentimentos de Olivia Rodrigo para toda a experiência sentimental do SOUR, o momento que ela te chama para dentro da história. Getting Older encerra na mesma premissa, quando a última frase que Billie canta é "tive uns traumas, fiz coisas que não queria, tava morrendo de medo de falar para vocês, mas acho que a hora é essa". As irmãs terminam exatamente da mesma forma, dando a brecha para que o resto do álbum entre e conte sua história, como a abertura de um musical de história falada, como páginas de um livro encantado que você é levado para dentro e alguém tem de continuar lendo para ver o que acontece com você. Como em Xuxa: Abracadabra. 

Ambos os álbuns são em formato story-telling, Billie e Olivia tentando te contar uma história com o limite de palavras que elas puderam ter dentro de uma composição. São dois lados da mesma moeda, um SOUR geminiano e um Happier Than Ever leonino. O que define o tom de ambas as narrativas é a forma como elas contam pedaços do que, no final do dia, é a mesma história: um coração partido e o medo de envelhecer. 

Olivia continua contando sua história com traitor, uma balada sobre ter sua confiança traída por alguém que talvez nem soubesse que era confiado dessa forma, um sentimento quase que infantil, como ciúmes de namoradinho de escola. I Didn't Change My Number, o primeiro capítulo da história de Billie, muito embora soe mais adulta e madura que sua associada, tem a mesma mensagem: "não respondi sua mensagem porque tô puta", um sentimento igualmente infantil, mas com uma percepção de superioridade maior. Enquanto a primeira abraça o sofrimento como algo dela, a segunda o renega e faz pouco caso da péssima habilidade que tem em se comunicar. O tom que Billie decide usar em seu álbum, na verdade, segue essa mesma premissa sempre: estou sofrendo, mas sou maior que tudo isso, e você é um merda - ao passo que Olivia prefere escrever sinfonias no piano que moldam seu sentimento de maneira a gerar mais sofrimento, para assim ser curada. 

Em HTE, Billie deixa claro que seu método de tentar superar o que quer que tenham feito com ela é se colocar acima da dor - acima de todo mundo, na verdade. É o que ela debocha em Lost Cause Therefore I Am, por exemplo, se tornando indisponível não só para o amor romântico, mas também para relações interpessoais de qualquer gênero, se fechando em suas próprias paredes, boas demais para todo o resto. Olivia devolve no seu outro lado da moeda com músicas como 1 step foward, 3 steps back, enough for you e happier, músicas parecidíssimas em ritmo e letras, que é o que acontece quando se escreve três músicas sobre a mesma coisa. Com elas, Olivia repete e repensa no que já foi e no que poderia ter sido, ocupada demais com sua obsessão no que deu errado para notar que está se agarrando em algo que já perdeu, só para não ter que lidar com o fim disso. Enquanto Billie finge abrir mão e deixar ir da maneira mais blasé que consegue demonstrar, Olivia não nega ainda nutrir saudade do que não mais será. Billie não demonstra ter saudades, só ressentimento. Olivia demonstra ter os dois - a fusão de ambos, inclusive, acontece em deja vu.

É uma dicotomia interessante se analisada a primeira música de ambos os álbuns. Getting Older era a música e o entendimento que dava brecha para as músicas seguintes do álbum de Olivia, ao mesmo tempo que brutal era a brecha perfeita para o tom magoadamente desinteressado das demais músicas do Happier Than Ever. Parece que ambas decidiram começar em uma entonação e terminar em outra, ou simplesmente tinham sentimentos complexos demais para se ater a um só. 

É claro que quem fala de dor também fala de amor. Onde já se viu adolescente que não canta sobre estar apaixonado? Enquanto Billie, ao usar de seus (poucos) anos a mais, escolhe fazer isso de forma mais sexual, Olivia se mantem nas rédeas do romantismo Disneyano - que, não por nada, foi onde ela foi apresentada ao mundo. Halley's Comet, provavelmente a única balada do Happier Than Ever, entrega uma Billie acompanhada de um piano forte o suficiente para soar como Can't Help Falling In Love do Elvis Presley - que, propositalmente ou não, também é do que a música se trata. Essa é a composição e letra mais crua do álbum inteiro, e te pega desprevenido por ter um interlude dentro da própria música, uma melodia que parece as composições de La La Land. É uma música que passeia por várias atmosferas, vários meios, assim como o sentimento da qual ela trata: "já fui amada antes / mas nesse exato momento / sinto cada vez mais / como se tivesse sido feita para você". É uma delícia de música, mas sempre com um sentimento melancólico por trás, como se você confessasse seu amor sabendo que algo vai dar errado no final. 

O mesmo sentimento Olivia entregou em favorite crime, uma das mais românticas do álbum, muito embora trate sobre um término. Ao contrário do tom de todas as outras baladas de SOUR, essa toca em uma ferida diferente, uma vez que fica claro que o erro, nesse relacionamento específico, foi mútuo. Não foi Olivia sendo machucada unilateralmente como relata as outras, mas sim duas pessoas se machucando juntas, mesmo que sem querer. Dá a entender que ambas as partes fizeram coisas questionáveis em nome de ficarem juntas, e, mesmo com tudo acabando, a história permanece. As harmonias dessa música te elevam a uma atmosfera musical semelhante à Halley's Comet, como se você deixasse de ser humano por 2 minutos para virar só um coração pulsante de sentimentos, cantarolando "mas digo que te odeio com um sorriso no rosto" e depois gritando a todo pulmão "TUDO QUE EU FIZ SÓ PRA TE CHAMAR DE MEU"!

Billie Eilish nomeou o álbum de Happier Than Ever por um motivo: ela sabia que Happier Than Ever, a música, era sua maior carta na manga. Parece que ela levou o percurso do álbum inteiro para conseguir colocar para fora o que realmente estava sentindo: e essa música é isso, cada letrinha dela. Decomposta em três fases, a música entrega um sentimento que vai crescendo e crescendo e crescendo, ficando cada vez mais alto e mais honesto até explodir em sons escancarados, que só não cabiam nas músicas anteriores, e por isso ela não o fez. Por isso ela aguardou a construção gradual dessa. Pela primeira vez, Billie Eilish gritou, porque sussurrar não parecia o suficiente para grandiosidade de um coração ferido. De longe minha favorita do álbum, tudo que ela andou e falou até aqui culmina nos últimos 60 segundos dessa música - quando você ferve o suficiente para inundar uma cozinha de água quente. Olivia entregou sua semelhante antes mesmo do lançamento do álbum, em seu single drivers license, o que provavelmente é o motivo pelo qual esse momento, no contexto do álbum, não parece tão grandioso. Todo mundo já sabia como drivers license soava, como a batida explodia saindo do refrão para a ponte. Ninguém sabia até onde Happier Than Ever poderia chegar. 

Talvez Olivia tenha entregado sensação semelhante em good 4 you, ao dar essa vontade de sair gritando LIKE A DAMN SOCIOPATH! para qualquer pessoa que não é sociopata. Billie fez o mesmo em Happier Than Ever, na terceira parte da música, quando tudo que a gente queria era gritar numa arena cheia de gente JUST FUCKING LEAVE ME ALONE! Happier Than Ever talvez seja a junção de good 4 you e divers license, juntas numa música só e mantidas em segredo lá no finalzinho do álbum, para ser ouvida só no dia do lançamento. 

(Um ode especial à frase YOU MADE ME HATE THIS CITY, antes da quebra no refrão de Happier Than Ever, uma frase que anda de mãos dadas com I LOVE YOU, AIN'T THAT THE WORST THING YOU EVER HEARD? da Taylor Swift e YOU'RE THE ONLY MOTHERFUCKER IN THIS CITY WHO CAN HANDLE ME da St. Vincent.)

A música que encerra um álbum é tão importante quanto a música que o inicia. hope ur ok é a última música do SOUR, uma quebra de expectativa quando você percebe que Olivia não está cantando para o mesmo garoto das 8 canções anteriores - ou está, mas o faz com outra mentalidade. hope ur ok trata de realidades que não são dela, mas ela o faz de maneira genuína e empática. É uma quebra de expectativa porque, para um álbum totalmente sustentado no Olivia-centrismo, escolher fechá-lo com uma carta de amor à pessoas que ama poderia soar deslocado, se não fosse feito com tanto zelo. Pessoalmente, penso que em um álbum tão explosão-sentimental-adolescente, essa faixa carrega as letras mais pesadas e intensas delas. Olivia sutilmente pontua o sofrimento de outros jovens, jovens como ela, mas que sofrem em perspectivas completamente diferentes - e ela o faz tanto de maneira a aproximar seu próprio sofrimento de coração partido como universal como também a afastá-lo de problemas mais sérios, mais pesados, mais longo prazo. hope ur ok termina como esperança entregue numa bandeja, como uma visão artística que consegue ir além dos próprios sentimentos ao absorver outros. 

Billie termina o Happier Than Ever no mesmo tom - não dando espaço para outras questões, mas sim finalmente dando espaço para ela própria. Depois de libertar tudo em Happier Than Ever, a penúltima faixa, Billie já se demonstra honesta o suficiente na última. Male Fantasy desfaz toda a narrativa montada ao decorrer do álbum, em todas as canções que reforçam definitivamente não querer mais nenhum envolvimento com quem te faz mal. Aqui, só no final, Billie se mostra vulnerável o suficiente, depois de gritar seus pulmões para fora, para dizer que "não consigo superar você / não importa o que eu faça / sei que deveria / mas nunca poderia te odiar". Billie confessa, no encerramento do álbum, que tudo que cantou no decorrer dele era só uma persona, tentando fingir até ser verdade, só para concluir que o sentimento não foi embora, não importa o quão alto tenha gritado. Ao contrário de Olivia, que cantou músicas o suficiente sobre seu sofrimento para conseguir encerrar o álbum tratando de um assunto que não esse, Billie passa o álbum inteiro evitando sua própria dor só para, no final, perceber que ela ainda está ali. 

É claro que os dois álbuns tem suas dissonâncias: Olivia fala muito de inveja e ciúmes, sentimentos que provavelmente vêm da sua vida como uma garota anônima - o que ela já não é mais. Provavelmente não serão temas revisitados em seu segundo álbum. Foi o que aconteceu com Billie: por já ser mais experiente no ramo, substituiu tais momentos em seu álbum para tratar de perseguição midiática, stalkers e fama indesejada. Quanto à percepção do público, enquanto Olivia deixa claro que é uma adolescente em crescimento, Billie dá dicas disso, mas prefere se portar como se já tivesse passado dessa fase. Olivia referencia Glee em suas músicas, Billie referencia The Office.

Ainda assim, quão complementares são esses álbuns - ambas lidando com parecidas peculiaridades da juventude de maneira totalmente diferente, atingindo diferentes resultados.

Ai, ai... Quão complementar é a dor humana...

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Nota da Autora: esse texto de forma alguma quer gerar comparação das duas obras de maneira a rivalizar dois trabalhos diferentes, mas sim a apreciar dois belos trabalhos.


Casais hétero construídos na narrativa LGBTQ+


Can we get back to posts leves e conteúdo irrelevante? Please? Yo-

Quando fiquei obcecada pelo casal Jo e Alex de Grey's Anatomy - uma série já conhecida como um símbolo dolorosamente hétero da cultura pop - percebi uma coisa: nós, os telespectadores*, não temos mais interesse pelo já ultrapassado clichê de relacionamentos heterorromânticos do qual foi formado os anos 2000. 

*Com base no meu algorítmo de seguidores do Twitter.

Explico: 

Jo e Alex foram a excelência enemies to lovers que uma série como Grey's Anatomy conseguira oferecer. Não era ótimo, mas também não era péssimo, e obviamente eu precisava espalhar pro mundo, muito embora ninguém mais assistisse drama médico em 2020 - exceto minha própria namorada, que também é dolorosamente "hétero". Lembro que cheguei pra uma amiga e muito seriamente disse que precisava apresentar esse novo casal a ela, que eram o epítome da comédia romântica dentro de uma série dramática que 20 anos atrás costumava ser boa. Disse que tinha tudo que as boas comédias românticas devem ter: começavam se odiando, ambos traumatizados, tinham o momento mais importante de conexão num casamento!, em que foram de encontro dublo sem saber que seriam acompanhantes um do outro!, e que a partir de então viravam amigos, e ele obviamente se apaixonava por ela, mas não podia falar de cara, pois é claro que ela era uma interna e ele chefe de pediatria. Uma delícia de drama romântico. 

A resposta que eu tive foi: "é casal hétero? Tô sem paciência pra casal hétero."

E aí eu comecei a pensar no quão ultrapassado, de fato, é o padrão de qualidade romântica na cultura pop centralizada em casais héteros. Finalmente - e de repente - a gente começou a ter diversos conteúdos com ênfase LGBTQ+, bons conteúdos, em uma velocidade que não nos obriga mais a engolir qualquer romance ordinário. Temos opções agora, opções mais próximas da nossa realidade, opções que não existiam antes, ao ponto que nem precisamos mais assistir todos os filmes adolescentes que a Netflix lança, a fim de preencher um buraco que só uma comédia romântica preencheria. Não! Temos outras coisas, outras leituras, outros casais disponíveis que não são um personagem meia boca do Noah Centineo.

No entanto, mesmo sabendo de tudo isso, Jo e Alex ainda representavam um casal fictício importante pra mim - daqueles que você realmente se interessa, se importa, e pesquisa gifs no Tumblr como se ainda fosse 2012. Parecia simples demais rebaixar um enredo tão rico a um simples casal hétero normal, como todos os outros. Eles tiveram noivado de mentira! Um casamento que deu tudo errado e eles nem estavam por perto pra ver, porque fugiram pra transar! Eles nem se deram o trabalho de planejar o casamento, contrataram uma amiga pra fazer isso e riram juntos de tudo que ela escolhia! Problemas com abandono parental e confiança! Festas de Halloween, festas de ano novo, uma lua de mel em que ela não parava de trabalhar por inspiração repentina, e ele apoiava isso! ROMANCE!


E aí uma luz acendeu na minha mente, um pensamento iluminado pela expansão cerebral que é notar algo que estava na sua frente e você só não percebia ainda:

Oh. [leia na entonação da sua fanfic favorita]

Todos os casais héteros que eu ainda gosto, eu gosto porque eles tem a essência que casais LGBTQ+ teriam. 

Me escuta, faz sentido: 

Existem alguns pré-requisitos pra que um casal LGBTQ+ exista na cultura pop. São requisitos silenciosos, mas ainda assim seguidos até hoje em salas de produção, atributos que sempre são inseridos no cenário homorromântico, conscientemente ou não. 

O RELACIONAMENTO (SAUDÁVEL) PROIBIDO

Convenhamos: o que grita mais GAY do que relacionamentos escondidos dos olhos públicos? Por qual outro motivo um casal teria de se esconder, de manter-se trancado à 7 chaves, se não por um grande motivo social e cultural de depreciação da realidade queer? Vez ou outra um casal hétero entrega esse mesmo atributo, por motivos bem mais irrelevantes e pedantes do que a manutenção da própria sobrevivência e integridade, e é  que surge a linha tênue entre o drama desnecessário do casal hétero fingindo ter os mesmos problemas de um casal queer e o drama DELICIOSO que é um casal hétero entregar tão bem essa problemática que, uma vez tirados os nomes e a identidade de gênero, poderiam oferecer o melhor dos romances gays já vistos.

Grey's Anatomy, muito embora conte com sua cota preenchida de personagens LGBTQ+ ao longo dos anos, ainda é o símbolo da cultura pop que mais nos entregou casais héteros icônicos. Vez ou outra um desses casais, muito embora ainda obedecendo o padrão, vai cair nas graças do público LGBTQ+, por um motivo que nem eles compreendem. Com tanta nova e boa opção de conteúdo queer, qual é o detalhe desses padrões que ainda nos atrai, que nos faz adotar casais heterossexuais como nossos pais, como parte da nossa personalidade? Eu tenho muito tempo livre (mentalmente falando), então eu descobri o motivo.

Quando eu digo que Grey's é uma série dolorosamente hétero, não é porque o conteúdo é integralmente hétero. Pelo contrário, a agenda gay de certos enredos foi, por muita vezes, bem explorado e extremamente necessário. Pra mim, o que significa ser um produto configurado como Produto Hétero é o público que o consome com afinco, e levando em conta que minhas tias crentes são obcecadas pela série, não custa descobrir que tipo de público sustenta Grey's Anatomy no ar até hoje. Sabe coisas gays que são feitas para pessoas héteros, e coisas héteros feitas pra pessoas gays? É isso.

Algumas coisas ultrapassam o público para o qual o conteúdo foi feito, assim não é preciso ter visto a série pra conhecer o discurso inteiro da cena "I'm infected by Mark Sloan". Curiosamente, se você digitar "i'm infected by" no Google, a primeira resposta é "by Mark Sloan", e a segunda "by coronavirus", comprovando que a popularidade do casal Mark Sloan e Lexie Grey consegue ser maior do que uma pandemia mundial. 


Foi só esse ano, em 2021, que eu vislumbrei a magnitude de Mark e Lexie, quando a nova temporada de Grey's retornou com Covid-19 e mortos (gringos imitando Amor de Mãe, que retornou com Covid e lésbicas). No novo plot, Meredith (irmã mais velha de Lexie e protagonista da série) encontra-se num universo paralelo entre a vida e a morte, onde constantemente reencontra vários dos personagens posteriormente mortos pela assassina Shonda Rhimes. Quando Mark e Lexie (re)apareceram em cena depois da trágica saída de ambos, a Internet virou aquele lugar mágico e assustador que todo mundo está falando da mesma coisa, ao mesmo tempo, na mesma intensidade.

Mark e Lexie não entregaram um romance proibido capaz de gerar prisão na Rússia, mas tiveram todos os altos e baixos dramáticos que um relacionamento com diferença de idade conseguiria ter, incluindo uma filha de Mark com sua melhor amiga bissexual, Callie. Aliás, o que grita mais "welllll to be honest I'm a hetero guy but I really try to be a good ally" do que ter uma filha com uma mulher bissexual latina? No fundo do nosso subconsciente ficou registrada aquela imagem de Mark Sloan como um grande defensor dos direitos LGBTQ+, o que é o mais perto de justificar tanto carinho que recebe da comunidade - porque, convenhamos, caso interpretado com um pouco menos de carisma e gostosura, Mark Sloan tinha de tudo para ser um homem-puta desprezível (LEMBRAR que existe um episódio inteiro dedicado à greve das enfermeiras se recusando a trabalhar com ele, formando um clube chamado Enfermeiras Unidas Contra Mark Sloan, ameaçando abrir processo sindical sustentado em assédio sexual. Ehrem).


O que, então, cativou tantos telespectadores gays em um hiper-sexualizado, cínico, maior vetor de doenças sexuais dentro de um hospital - além de, é claro, todos esses fatores? A interpretação do Eric Dane a entregar o personagem e, é claro, seu relacionamento com a única personagem capaz de ser seu completo oposto, Lexie Grey. 

Acompanhar um casal que não pode ou não consegue ficar junto com a tranquilidade e normalidade de casais "convencionais" é um ponto de pressão extremamente delicado pra comunidade gay. É nessa teoria que eu centralizo todo esse texto: nessa figura silenciosa que é amar certo casais comuns e tradicionais que oferecem atributos de amor proibido e ameaçado, enredos que batem perto demais da casinha. 

Lexie e Mark se perderam um do outro tantas vezes - e tão frequentemente - que morreram sem saber se estavam juntos ou separados, jurando amor eterno um ao outro antes de terem seus corpos comidos por animais (vdd, essa série é doida). O motivo de tantos desencontros nunca foi referente aos sentimentos de ambos, a única coisa contínua entre os dois do começo ao fim, mas sim pelos empecilhos da "vida real", pelo que significaria pra ambos continuarem juntos, constantemente se afastando, tudo justificado na tentativa de fazer "o que é melhor pro outro". Soa familiar?

Um clássico já conhecido por todos os entusiastas de romance é o abrir mão achando que o melhor para o objeto do seu afeto não é você mesmo. A humanidade por si só é complexa demais pra reduzir esse sentimento à uma característica gay, qualquer pessoa podendo ser vítima de auto-aversão nessa economia, mas já estive em alguns relacionamentos sáficos (dois) pra dizer com propriedade que, pra gente, isso é uma tarde normal de quarta-feira. 

Um outro casal da ficção que entregou esse sentimento com maestria, tão deliciosamente bem feito, foi Sutton e Richard, de The Bold Type. Esse é um casal hétero sem ressalvas, que é o que acontece quando um homem é escrito por uma mulher millennial que ainda fala de feminismo com a mesma força que todo mundo falava em 2015. Aqui o mercado de trabalho (gosto como essa é a desculpa universal pra que um casal hétero tenha um romance proibido) é, de novo, o antagonista: ele trabalha como advogado da editora em que ela é uma simples assistente, é claro. No entanto, a ~~ambientação desses dois é tão mágica e gostosa, que todos os clichês parecem de muito bom gosto, e dá até pra chorar emocionada com cenas em que eles se pegam escondidos dentro do elevador nos intervalos, um privilégio que só cenas que entregam tensão sexual palpável a ponto de cortar com uma faca conseguem ter. 


Sutton e Richard entregam gloriosamente a raridade que é acertar um casal hétero cis branco numa cesta recheada de subtexto gay, e é tão sutil que você, como telespectador, não nota que isso sequer está acontecendo - até se pegar torcendo pra que este casal completamente NORMAL possa ter um encontro no parque e andar de mãos dadas!! Por um segundo você pode se sentir ridículo de se prestar ao papel de quem chora pra um homem rico e uma mulher branca se beijarem em público, mas, ei, tudo em nome do Bom Romance, certo? 

Acredito que o Bom Romance de Sutton e Richard seja tão bem construído porque, muito além dos Detalhes que já eram direitos de nascença do público LGBTQ+, o padrão de masculinidade e feminilidade é propositalmente quebrado nesse casal, uma vez que a própria premissa da série é celebrar pautas pro-feministas. É por isso que [SPOILER QUARTA TEMPORADA] quando eles se casam, por exemplo, bate num pedaço bem mais especial do coração quando é o Richard a andar até o altar para encontrar a noiva, e que é sempre ele a abdicar das próprias vontades pra satisfazer as dela - muito embora eles reforcem constantemente que ele é um cara de 40 anos e ela uma mulher inconstante de 25. 

É claro que, assim como qualquer outro ordinário casal hétero, esse aqui também chegaria num ponto do enredo que o único drama restante seria, bom, enredos dolorosamente héteros, é claro [quinta temporada]. Mas mesmo assim, mesmo com essa quebra de expectativa do plot perfeito, Richard continua se encaixando naquela categoria do nosso Homem Branco Feminista Favorito, que recebe nosso biscoito de vez em quando, e que na vida real seria aquele namorado legal da nossa melhor amiga, que dá carona no pós-festa e tira brincadeira na mesa do churrasco pra se enturmar. 

Às vezes acontece de o namorado legal da melhor amiga já ser do grupo de amigos, e, na ficção, esse foi o único casal de excelência com namoro escondido que eu encontrei que não envolvia a proibição do relacionamento em cima do diferente cargo de trabalho, e sim na já preexistente relação de amizade dentro de um grupo só. Pra começar, Monica e Chandler recebem selo de excelência Casais Héteros Para Pessoas Gays porque ambos, juntos e separados, exalam energia bissexual. Dividir apartamento com melhor amigo gostoso é coisa de gente gay - gente hétero ou mora sozinho ou mora com os pais. Não surpreendentemente, ambos viveram anos como os locatários de Joey e Rachel, e isso por si só é gay, mas ache o que quiser. 

Chandler e Monica são exemplo de excelência independente do tema que estivermos abordando, é claro, porque é da natureza deles já nascerem Aclamados. Aqui, o trope friends to lovers ainda oferece a cereja do bolo que é o namoro proibido/escondido, inicialmente privado aos olhos dos amigos e familiares, mesmo sem nenhum motivo aparente - me mande um e-mail agora QUEM que nunca ficou com um amigo? 

Ainda assim, mesmo sendo desnecessário, é algo que funciona bem demais, tanto pro enredo quanto pro desenvolvimento de ambos os personagens. Com Monica e Chandler, assim como na relação de Sutton e Richard, também existe a quebra de expectativa do que seria o "esperado" de um casal padrão como os dois, o maior exemplo sendo o pedido de casamento feito e organizado por Monica, e não por Chandler - o que, *CHEF'S KISS*, é um grande momento de roteiristas que entendem e conhecem seus personagens, de tão on character que é a decisão de ser feito dessa forma: Chandler, que não acreditava em relacionamentos e vivia assustado com a ideia de assumir compromissos; e Monica, que compreendia as limitações do companheiro e, obedecendo seu maior traço de personalidade de controlar e planejar tudo, deu o grande passo de cuidadosamente pedir para que Chandler abrisse mão de seus bloqueios pra que ela pudesse ajudar a carregá-los. 


*Sighs* Como é bom amar o amor...

Infelizmente nem tudo são flores e velas, e definitivamente nem tudo é interessante como Slexie, bem feito como Sutton e Richard, ou clássico como Mondler. Às vezes os já citados requisitos, quando não são bem executados, vira uma grande desesperada bagunça hétero. O que nos leva ao

RELACIONAMENTO (NÃO-SAUDÁVEL) PROIBIDO

Tem uma diferença - uma linha que nem é tão tênue -, entre um relacionamento que é proibido por questões profissionais, abstratas e pessoais... e um relacionamento que é proibido por ser ilegal, por exemplo. [risos nervosos]

Não tem um exemplo mais no ponto do que Aria e Ezra, de Pretty Little Liars. Muita gente vai tentar colocar os mas. Ele era o professor dela, mas. Ela era menor de idade, mas. Sim, hoje em dia parece estranho, mas. Estou ciente dos mas, afinal eu também amo boas cenas românticas de casais tirando foto com sacola na cabeça, ou tendo que ir sair da cidade para se encontrar. No entanto, a essa altura do campeonato, eu vou bater palma pra homem adulto levando adolescente pra Filadélfia escondido porque, caso a beije na rua da própria cidade, pode ir preso? Parou, né. Soa até de mal gosto que eu apoie uma coisa dessas. 

Ao contrário de Richard e Sutton, duas pessoas adultas, Ezra, no começo do relacionamento dos dois, já tinha seus 22 anos - ao passo que Aria, sua aluna, tinha 15, abaixo até mesmo da idade legal de consentimento nos Estados Unidos. 

(foda que é muito boa essa cena aí)

Irei, clandestinamente, rever uma cena ou outra dos dois que marcou minha adolescência? É claro. Vou sempre lembrar que esse casal foi literalmente responsável por enfiar na minha cabeça que minha paixão por um garoto de 21 anos que flertava comigo quando eu tinha T R E Z E era de bom tom e totalmente aceitável? Vou também. 

Perigo isso, gente. Perigo. 
Mas se uma diferença de 7 anos de idade assusta, imagina uma diferença de 87 (oitenta e sete)?

Olha, eu não estou dizendo que Bella e Edward representam um casal a ser questionado na cultura pop aos nossos padrões sociais, porque lançar algo assim na Internet é o mesmo que me amarrar na fogueira e atear fogo - mas se eu ESTIVESSE falando algo assim, eu teria meus motivos.

Quando o relacionamento entre um homem e uma mulher cis não é proibido por cargos diferentes no trabalho, por (visível) diferença de idade, ou por dividirem o mesmo grupo de amigos, o que resta pra proibir? Um deles ser um vampiro de 101 anos, é claro. E não somente: sua vontade constante de matá-la. Ou a vontade constante de seus familiares de matá-la. Ou a vontade constante que os chefões da máfia vampírica na Itália tem de matá-la. Ou a vontade constante que todos os vampiros da região tem de matá-la. Basicamente eu acho que, se tudo no relacionamento resulta no risco de sua própria vida, já tem no mínimo umas 39 bandeiras vermelhas levantadas e rodopiando no ar. 

Bella e Edward ficam naquele limbo de coisas maravilhosamente terríveis, ou terrivelmente maravilhosas. Não dá pra saber muito bem o que a Stephanie Meyer, uma crente, ao escrever uma personagem inspirada nela mesma (kk) que só pensa em foder um vampiro, quis dizer com toda a história... Mas também sei que, resumir a saga Crepúsculo nessas poucas e vagas opiniões, é tratar de maneira relevante todo um enredo sobre vontade de poder, vontade de abdicar poder, falta de livre arbítrio e vida eterna. 

É nesse sentido que Bella e Edward tornaram-se absurdamente BÍBLICOS pra mim, e a essa altura vocês já devem saber que se tem uma temática que me interessa é subtom cristão em pautas LGBTQ+. A presença de tamanha culpa cristã e preocupação sobre o que resultará para a alma da pessoa amada o fato de Estar Com Você é algo que só aparece uma vez a cada duas luas, e só tem duas causas: ou você é um vampiro que viveu lá por, sei lá, 1900 - OU você é gay que cresceu em lar cristão. Pra resumir em miúdos: o Edward representa o gay que cresceu na Igreja, e a Bella representa a companheira que não dá a mínima se vai pro inferno ou não, desde que ela transe. 

Apenas casais com uma tonalidade bíblica seriam capazes de entregar tanta tensão, sacrifício, proibição, sacrilégio, pecados, inferno e vida eterna num contexto só - e isso só vem, de verdade, em enredos gays ou enredos de qualquer um dos filmes da saga Crepúsculo. Mais do que o relacionamento proibido dos dois, o envolvimento por si só significa o peso da condenação eterna, pelo menos aos olhos do nosso protagonista Edward Cullen - e Bella Swan o ama tanto que está disposta a abrir mão da própria alma pra estar com ele. Se isso não grita PROBLEMAS DE CASAIS LGBTQ+ pra você, não sei mais o que pode gritar.  


[Hoje o meu desafio é que vocês assistam Lua Nova como se fosse um filme gospel de romance LGBTQ+ alto orçamento.]

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Prometo que não estou com minha agenda gay transformando todos esses casais héteros em casais gays. Isso eu faço com músicas da Taylor Swift e o triângulo amoroso Betty x James x Augustine em Folklore. Mas se a vida é só assistir e ouvir música, por que eu Não interpretaria grandes casais da ficção do modo como eu bem entendo na minha própria vivência pessoal? 

Delicioso é procurar teor gay em todo lugar.
Diz a mulher que denunciou diversos graves casos de queerbaiting ao longo dos anos. 
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Vinde a mim todos os que estais cansados e oprimidos, e eu vos aliviarei*


*Mediante termos e condições.

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Foi num mês de junho (de 2019) que eu escrevi pela primeira vez sobre o relato do meu Gênesis - sendo comicamente trágico que tenha sido justo em junho, esse mês de dias pesados que amar vira um ato desafiador. Esse junho de posts coloridos, de Senado e Câmara Federal refletindo holofotes em arco-íris, de propagandas de publicidade abraçando uma visibilidade que não existe em janeiro, outubro, dezembro. Foi num mês de junho de 2019, esse mês do orgulho - a quem quer que pertença esse orgulho -,  que eu escrevi sobre meu retorno à instituição cristã de I maiúsculo, que em junho de 2019 parecia me envolver no abraço da tão esperada compreensão. Mas abraços escondem faces, e faces denunciam intenções. Em junho de 2021, 2 anos depois, esse abraço me apertou, me sufocou - e a mesma mão que me abraçou, arrancou meu coração fora. 

E então eu morri. Não morri fisicamente, apesar de ter tentado. 

Para eles, morri em espírito. 

Não há judeu nem grego, escravo nem livre, homem nem mulher; pois todos são um em Cristo Jesus.  (Gálatas 3:28)

Não é mais do meu interesse aparecer aqui pra escrever páginas e páginas sobre minha experiência, minha fé, e as formas que isso é covardemente utilizado pra me atingir, pra me fazer virar alguém que eu não sou. Não quero mais. Eu não tenho competência pra dizer quem Deus deveria ser, não tenho necessidade de tentar demonstrar quem Ele é pra mim - se é que sobrou algo a ser. Nem quero dizer sobre o quanto a Igreja mata até hoje, perpetuando o mesmo enredo à época de Jesus Cristo, que condenava aqueles que oprimiam em nome da Lei de Moisés. Cansei de tentar me expressar em tudo isso. 

E ainda assim, sou constantemente forçada a continuar. 

Nunca foi me dada uma escolha às consequências que atribuem a mim. Eu sequer pedi por um salvador? Eu pedi por uma vida em que tenho de me mutilar e me rasgar pra caber dentro de uma caixa que simplesmente não sou eu, só pra que isso me dê a vida eterna? Sangrando como eu sangro, você acha que eu tenho interesse de viver eternamente? Tu me fizestes como bem entendeu, e não me ofereces Sua misericórdia ao só me deixar morrer em paz? 

É difícil o suficiente ser informada e relembrada, constantemente, sobre a obrigatoriedade de louvar e adorar um Deus que, pra você, só é apresentado como alguém que não lhe recebe da maneira como estás. 

Um cartaz escrito "venha até mim TODOS", com as condições em letras minúsculas, uma série de restrições ao significado de todos. 

Um outro cartaz mais gentil, logo ao lado, escrito "venha a mim TODOS", sem as letras minúsculas de condições, que te chama a atenção por não estarem segurando, na mão contrária, tochas e espadas. E aquilo te faz bem, porque finalmente parece que algo está mudando, até ficar claro que tudo não passa de uma falsa sensação de "sou tão galera, amo sem ver a quem", só pra te moldar aos mesmos pré-requisitos porque "podem VIR todos, mas para ser continuar aqui como Certo, negue-se a si mesmo".

Que Deus é esse que vocês pregam? O Deus abraâmico, o justiceiro, uma entidade obcecada por glória, que teve de criar toda a humanidade só pra ser louvado. Ele se parece com o Javier Bardem? Você faz, faz, faz - se recorta tantas e tantas vezes pra tentar ser o que letras estáticas da Bíblia te dizem pra ser - mas nunca é o suficiente? Você vive uma vida robótica incapaz de responder questionamentos, lutando e matando por uma palavra que você sequer entendeu, tamanha sua falta de compreensão literária? 

Eu temo esse Deus. Não o temor divino, o temor de medo. Eu tenho medo do que vocês falam. Eu me recuso a seguir em algo por medo, por achar que se não feito exatamente assim, eu serei jogada em um lago de fogo.

Que me jogue em um lago de fogo. Estou certa que não arde tanto quanto meu coração arde em junho de 2021. 

Quanto a estes pequeninos que creem em mim, se alguém for culpado de um deles me abandonar, seria melhor para essa pessoa que ela fosse jogada no lugar mais fundo do mar, com uma pedra grande amarrada no pescoço. (Mateus 18:6)

A esta altura eu não me importo se você diz saber que eu não entrarei no céu. Já tiraram tanto de mim, de quem eu sou, do que eu acredito, que honestamente nem sei se há um céu - e, caso exista, não sei se pertenço lá. Sei que não pertenço aqui com vocês em terra. Não consigo. Já tentei. Meu coração não é assim. 

Se o céu eterno é uma extensão da Igreja na terra, o que eu faria lá? Confraternizaria com meus irmãos que me perseguem, com os que me abandonaram, com os que me espancaram, que me expulsaram de ambientes que eram meus? Se você espera isso de mim, estás esperando na pessoa errada. Esse é Jesus, não eu. Não sou Jesus, o filho de Deus, pra ser perseguido e morto em prol da causa maior, em amor à humanidade. Sou só uma pessoa. 

E ainda assim me mata diariamente, de pouquinho em pouquinho, que os que se entendem como escolhidos são meus perseguidores, perseguidores dos que são iguais a mim. Me mata que meus similares tenham de se esconder junto comigo, temer pela própria vida, temer um leve e simples segurar de mãos com um igual. Não percebem a dor que propositalmente nos provocam - seus irmãos, seus iguais? 

Jesus teria a arrogância que sai da sua língua ao se colocar como superior a todos os outros pecadores imorais que são tão diferentes de você? Teria tamanha agressividade ao colocar o próprio filho na rua? Seu Jesus faria isso? Pare de tentar camuflar seu próprio coração apodrecido em fundamentos de um cristianismo que não te ensinou o que você perpetua. Pessoas tendenciosas te ensinaram isso. Jesus nunca ensinou intolerância - quem o matou, sim. 

e lhes disse: "Vocês sabem muito bem que é contra a nossa lei um judeu associar-se a um gentio ou mesmo visitá-lo. Mas Deus me mostrou que eu não deveria chamar impuro ou imundo a homem nenhum. (Atos 10:28)

Em junhos, eu não sangro só por mim. Sangro pelos meus iguais. Os perseguidos, os destituídos de receber amor da própria mãe, os incompreendidos, os que tiveram portas fechadas e sessões de exorcismo justificadas no amor alheio. Eu não dou mais duas fodas pra crente colhendo o que planta, a justiça não é minha a ser feita. Com o coração que eu lutei para manter, eu antes ainda conseguiria oferecer simpatia aos meus opressores. Hoje, depois de tanto e tudo, só consigo olhar com indiferença. Não é do meu perdão que você precisa.

Eu me posiciono com os meus. Com os que acordam diariamente colocando a cara à tapa, emocional e fisicamente, onde todo dia é uma batalha só pra manter-se vivo. Em junho, neste bem mais que nos outros, eu sinto o que vocês sentem, o que nós sentimos. Eu divido meu coração com vocês, e ofereço o meu afeto e consolo. Não é o divino - eu jamais conseguiria me assemelhar ao Divino -, não é o que é idolatrado pelas massas, mas é um verdadeiro afeto, um honesto consolo. 

Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem. 

Mesmo que devessem saber. O nosso choro e nosso desespero deveria ser sinal suficiente. 

Às Igrejas e seus preletores, avisem que eu morri. Deixem acharem que eu morri. É melhor assim. 

Feliz junho, feliz mês do orgulho LGBTQI+, feliz, feliz, feliz... Sou feliz de amar como amo, sou feliz de ser amada de volta. Tenho orgulho da minha sobrevivência, da nossa resistência. Mesmo sem teto pra morar, sem afeto, sem fraternidade, sem compreensão, sem acolhimento, sem pele, sem vida. Mesmo que nos tirem tudo, mesmo que nos tirem a vida, como tiraram de tantos de nós justamente neste mês... mesmo assim, teremos vivido. De cabeça erguida, sempre. 

Ninguém mais deve ter o poder de nos dizer o que ser. 

Se o preço a ser pago por essa coragem às cegas, mesmo na fraqueza, for queimar no fogo... que assim seja. Estamos queimando no fogo dessas fogueiras mundanas há tempo o suficiente pra saber que se cairmos, caímos lutando. 

— Ai de vocês, mestres da Lei e fariseus, hipócritas! Pois vocês fecham a porta do Reino do Céu para os outros, mas vocês mesmos não entram, nem deixam que entrem os que estão querendo entrar. Ai de vocês, mestres da Lei e fariseus, hipócritas! Pois vocês atravessam os mares e viajam por todas as terras a fim de procurar converter uma pessoa para a sua religião. E, quando conseguem, tornam essa pessoa duas vezes mais merecedora do inferno do que vocês mesmos. (Mateus 23:13, 15)

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Esse texto é dedicado a todos que já foram oprimidos por discursos intolerantes e intolerantemente religiosos. Aos que sofreram e sofrem qualquer tipo de violência física, psicológica ou moral por serem quem são. Sinto por e com vocês. Obrigada por sentirem por mim de volta. Estamos juntos.

4 álbuns para ouvir e fingir que Daisy Jones & The Six é real

 

Esqueçam tweets virais e tiktoks sobre geração y e millennials, nós encontramos o Messias dessa divisão. Não importa se você nasceu em 1989 e parte o cabelo de lado, se nasceu em 1998 e não se encaixa em lugar nenhum, ou se nasceu em 2001 e não usa calça jeans - essas diferenças geracionais não importam mais, agora que achamos nosso elo em comum: o TJRU.

Taylor Jenkins Reid Universe. 

Quando li Daisy Jones & The Six pela primeira vez, o mundo não era um cenário apocalíptico ainda. Era a última semana de dezembro de 2019, num sítio isolado onde o único sinal com o mundo externo era por um telefone na parede da sala, minha única preocupação era deixar a massa de cuscuz no ponto certo pra comer no café da manhã na varanda, só pra logo depois colher mangas no parquinho, passar protetor solar, e ficar pra sempre na espreguiçadeira na beira da piscina, com toda uma floresta atrás de mim. 

Nessa época eu também estava apaixonada por alguém que eu achava não poder ter. Saí para o meu retiro espiritual certa de que aquilo seria bom, que eu não só precisava como merecia passar dias sem contato externo, sem ansiar a próxima mensagem que o objeto do meu amor não correspondido poderia me mandar. Toda manhã eu fazia meu cuscuz, colhia minhas mangas, colocava um biquini e saía pra piscina, procurando uma sombra em que eu pudesse sentar com o livro de minha escolha, e finalmente, depois de muito tempo, relaxar. 

Exceto que o livro que eu levei foi Daisy Jones & The Six. E a piscina era ótima, a floresta com trilha atrás de mim era ótima, a completa falta de barulho humano dando lugar ao barulho da natureza era ótimo - mas, ainda assim, eu era uma menina com um amor não correspondido que estava lendo Daisy Jones & The Six. 

Seguro dizer que ali, mesmo na beira da piscina usando um chapéu azul, eu estava em completo estresse por ser uma Daisy Jones perdidamente apaixonada por um Billy Dunne. 

Mas isso é história pra outro tipo de texto.

(sim, nós namoramos hoje).

Depois de alguns livros completamente normais, nada muito diferente do conteúdo de qualquer outro livro young adult de livraria de shopping, Taylor Jenkins Reid descobriu, numa revelação que só pode ter sido Divina, que seu nicho era um bem específico: escrever histórias sobre pessoas famosas que não existem. Tenho essa teoria de que os livros da Taylor que tratam sobre fama fizeram tão mais sucesso que seus romances básicos anteriores porque esses famosos parecem mais reais do que os anônimos dos livros de sessão da tarde. 

É improvável que você termine Evelyn Hugo sem pensar quem seria a Evelyn Hugo da vida real. É improvável que você termine Daisy Jones & The Six sem pesquisar se essa é uma banda que existiu de verdade. "Eu acabei de ler um memoir de uma banda real que eu nunca ouvi falar?"

Todo mundo quer saber quem é, quem foi, ou quem teria sido Evelyn Hugo, Daisy Jones, Mick e Nina Riva. Absolutamente ninguém vai ligar se Emma Blair é uma pessoa que existiu ou não, em quem ela é inspirada, quem ela poderia ser. Quem diabos é Emma Blair?*

Pra mim, essa é a magia do universo da Taylor Jenkins Reid, onde a menção de novas personalidades públicas em cada livro pode virar um nova história, um novo enredo, uma nova fama. E se você lê esse blog, é certo que você gosta de fofoca de Hollywood. Então não interessa se de cabelo de lado ou no meio, todo mundo tem Taylor Jenkins ao seu favor. 

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Minha paixão por bandas de rock vai beeeem mais atrás, em tardes na casa do meu pai, grandes caixas de som e pendrives no som do carro. Meu pai se denominava uma "enciclopédia do rock", nas palavras dele, e tudo do mais clássico ao mais underground eu ouvia. Tinha de ouvir. "Rock não foi feito pra se escutar em volume baixo", meu pai também dizia. 

Que Deus o tenha.

Ele não morreu, ele só parou de falar comigo.

Eu e meu pai sempre tivemos uma realidade e vivência conturbada - ele conseguia ser a parte mais normal e mais tóxica da minha vida, ao mesmo tempo. Ao sair dela, meu pai não me deixou muitas coisas. Mas uma herança cultural ele deixou. Não tenho pra quem ligar quando brigo com minha mãe ou quando furo o pneu do carro, mas ainda tenho histórias sobre discos do Raul Seixas, rankings dos melhores bateristas de rock da década rereretrasada, intrigas de colegas de banda e uma curadoria das melhores lojas da Galeria do Rock pra achar camisetas de heavy metal - inútil pra muitos, mas da qual me orgulho muito.

Ler Daisy Jones & The Six na beira da piscina, além de me trazer de volta os sentimentos que eu estava tentando evitar, também era como ter meu pai nos finais de tarde, me levando pra tomar sorvete na farmácia da esquina, só porque ele podia, só porque tínhamos a chance. Era retornar ao banco do passageiro e falar pra ele, orgulhosa, que eu tinha achado uma banda de rock boa o suficiente pra ter criado coragem de mencionar pra ele em primeiro lugar - justo ele, que passou 40 anos da vida fazendo uma curadoria das melhores. Se ele curtisse, se ele pedisse pra ouvir de novo ou perguntasse quem era - se ele se interessasse de alguma forma, eu teria ganhado meu dia. 

Esses são os álbuns que eu mostraria pro meu pai no carro, no caminho da escola pra casa, torcendo pra que ele gostasse tanto quanto eu. Se Daisy Jones & The Six fosse uma banda que de fato existisse, nós tocaríamos no carro assim:

01. Teatro d'ira: Vol. I - Måneskin


Sabe quando você esbarra em uma nova manifestação de arte, que antes você não conhecia, e pensa "isso foi feito pra mim"? Måneskin foi feito pra mim. É mágico ter match artístico, que te faz ser grato por estar vivo e ter a oportunidade de conhecer algo que fala à sua alma - algo que não acontece com muita frequência no capitalismo, onde ninguém fica feliz por estar vivo. Mas tem aqueles momentos, raros momentos, que você esbarra no trabalho artístico de alguém que preenche todos seus requisitos: Uma baixista gostosa? Tem. Um vocalista que poderia ter sua foto estampada na bandeira bissexual? Tem. Rock com muitos solos de guitarra? Tem. Músicas em italiano, pra facilitar que você finalmente aprenda a língua que mais admira? Tem também. 

É uma banda de rock italiana com um monte de gente gostosa, o que mais vocês querem de mim?

Teatro d'ira: Vol. I é o segundo álbum de estúdio da banda, e o mais recente. Totalizando apenas oito músicas, esse álbum foi escrito em sua totalidade pelos quatro integrantes, da primeira até a última nota, sem interrupção de compositores e letristas externos. É um trabalho que é pra ser deles, feito apenas por eles, contando sobre eles. E funciona. Meu Deus (Dios mio), como funciona. 

Se Måneskin fosse Daisy Jones & The Six, na verdade eles seriam só os The Six. Måneskin é definitivamente o que os irmãos Dunne achavam que eram quando começaram, quando só queria expressar a frustração de ser jovem na década do rock, e a eterna condenação de não se encaixar. Esse seria um álbum feito pelos The Six sem a presença de uma Daisy, sem a presença dos dramas e brigas e greves de gravação por não se suportarem. Quando tudo era arte e fraternidade, The Six teria feito esse álbum. 

Billy e Graham Dunne, ao se reconhecerem como futuros artistas, ao desejar a fama e a oportunidade de fazer música de garagem em garagem, provavelmente tinham o ar insolente e autoconfiante que Zitti E Buoni traz, com não só o sentimento de ser melhor que as mentes pequenas ao redor, mas o conhecimento de que isso é verdade. Coraline, que poderia muito bem chamar-se Camila, é uma música sobre essa personagem que sente tudo mais do que todo mundo, que é bondosa ao ponto de colocar suas necessidades atrás das que qualquer outra pessoa ("Coraline chora, Coraline tem ansiedade, Coraline quer o mar mas tem medo da água, e talvez o mar esteja dentro dela"). Essa música é um poema de amor de 5 minutos para Coraline, nossa Camila Dunne. É sobre reconhecer a pureza do seu amor, reconhecer que não é merecedor de tanta gentileza, mas oferecer o pouco que tens para dar ("Em troca não peço nada, só um sorriso, dada pequena lágrima sua é um oceano sobre meu rosto"). Coraline é definitivamente uma música que Billy Dunne, pré-fama, escreveria sobre Camila, o lugar onde ele achou o amor pela primeira vez.

Vent'anni, uma balada que vai crescendo conforme o desejo do narrador de se libertar das algemas dos vinte anos, demostra o maior medo de qualquer artista do rock: morrer e ser esquecido sem deixar nada significativo em terra. É uma homenagem ao quão deprimente os 20 anos podem ser, com a mistura de sentimentos diferentes vindo de todos os lados. É o sentimento pré-fama de qualquer artista que promete se manter verdadeiro ao lugar de onde veio, mas que mal pode esperar pra tudo mudar, e logo as lanchonetes de estrada dão lugar aos restaurantes que servem cocaína na bandeja. 

Teatro d'ira se traduz livremente para Teatro da Ira. Não acho que os The Six tinham essa ira enraizada ao se unirem - mas sei que cada um tinha a sua, individualmente. É a sina de qualquer juventude, de qualquer geração. Não é a ira dos affairs entre integrantes de banda, ou do Eddie querendo socar a cara do Billy no chão. Essa é a ira de qualquer jovem no século da depressão, onde sua raiva é só por estar vivo, por ser obrigado ao ser uma existência pensante. 

(Eu mencionei que todos os integrantes dessa banda são Geração Z? Isso é uma epidemia).

Para ouvir também: Lividi Sui Gomiti, I Wanna Be Your Slave, La Paura Del Buio

02. The Civil Wars - The Civil Wars


Quem é Daisy Jones e Billy Dunne na vida real? São eles. 

Os motivos pra isso dão conteúdo pra uma dissertação sozinha, e é tanta coisa e tantos detalhes que eu tive que ir atrás de fontes diretas** que soubessem me contar a história melhor do que qualquer pesquisa superficial no Google.

O que eu entendi lendo por cima e recebendo fofocas desses dois, é que ninguém sabe exatamente o que deu errado. O que te leva a abruptamente romper projeto e qualquer tipo de relacionamento com seu parceiro musical? O que acontecia nos bastidores, nos ensaios das harmonias de vozes de ambos, que casavam tão bem? Qual era de fato a inspiração nas composições que ambos compartilhavam? Como eram tão musicalmente íntimos e despidos, tão parte do próprio mundo, sendo casados com outras pessoas? 

Se Daisy Jones & The Six tivesse tido tempo o suficiente para ter mais de um álbum, algum dos não lançados seria qualquer um dos álbuns de The Civil Wars. Pedi que algumas amigas mestres no assunto me indicassem um, um que representasse um álbum não lançado de DJ&TS, perdido em fitas demos. A resposta foi a mesma: The Civil Wars, homônimo da banda. 

Conta a história que o álbum terminou de ser gravado em meados de 2013, e a esta altura a dupla já nem conseguia se olhar diretamente, como mostram filmagens tremidas de shows na época. Já tinham todas as bandeiras vermelhas levantadas: falta de contato visual, esquecimento proposital de agradecimentos em palco, a escolha por ignorar que ambos trabalhavam juntos. Antes mesmo desse álbum ver a luz do mundo, Joy e John Paul tiveram uma turnê interrompida, devido a "brigas internas e diferenças irreconciliáveis". Lembra alguém? 

Mesmo depois de largar uma turnê pela metade, o duo voltou com o álbum The Civil Wars, em um compilado de músicas que em sua grande maioria falam de devoção humana em contradição à devoção divina, relacionamentos fadados ao fracasso, traição e pessoas que vão embora levando consigo seus sentimentos. É de se pensar...

Meu primeiro contato com The Civil Wars, o duo, foi quando descobri a música Poison & Wine, tantos anos atrás, do primeiro álbum deles, o Barton Hollow. Essa música sempre foi minha música referência ao imaginar como soaria Honeycomb, o primeiro e famoso dueto de Daisy e Billy no livro. Se Honeycomb fosse uma música real - e vai ser, em breve, mas se fosse uma música que já existe -, seria Poison & Wine. O álbum The Civil Wars seria algo posterior, algo pelo final, algo que representa o conhecimento de sentimentos de ambas as partes, um sentimento que nem deveria existir, e que envolve mais de duas pessoas. 

A música que abre o álbum The One That Got Away, significativo logo no título, e o primeiro verso cantada é "I never meant to get us in this deep / I never meant for this to mean a thing". Se eu tivesse uma dupla em que canto músicas de amor com meu companheiro platônico, eu simplesmente escolheria não abrir um álbum com essas palavras, não depois de largar uma turnê por tensão mútua. É curioso que durante toda a extensão do álbum seja possível achar pistas de infidelidade, e cabe a você decidir se isso vem do eu-lírico ou do próprio compositor da música. Em Eavesdrop eles me entregaram minha letra favorita do álbum inteiro quando cantaram "let’s let the stars watch, let them stare / let the wind eavesdrop, I don’t care", o que te faz questionar o que exatamente os narradores tem de esconder.

The Civil Wars (o duo) por si só é uma experiência completamente Daisy Jones & The Six das ideias - mesmo que as músicas não se relacionassem à história, mesmo que as teorias não fossem semelhantes. Assim assim ficaria a pergunta: o que diabos aconteceu?

É a síndrome da Aurora de novo e de novo e de novo. 

Para ouvir também: I Had Me a Girl, Same Old Same Old, Oh Henry

03. Plastic Hearts - Miley Cyrus

Se Måneskin é os The Six sem a Daisy Jones, Miley Cyrus em Plastic Hearts seria a Daisy Jones sem os The Six. 

Se Demi Lovato teve suas 24 personalidades destrinchadas nos últimos dois posts, Miley Cyrus possivelmente teve o dobro. Mas sabe aquela sua persona que, por mais que seja falsa, é a mais legal de todas? A da Miley é essa. 

Tem uma certa nostalgia nessa nova onda do ressurgimento de mais músicas rock e punk voltando à indústria, seja lembrando-se do gosto musical dos senhores nossos pais ou só mesmo recordando de icônicas trilhas sonoras de filmes adolescentes dos anos 2000. Não importa quem somos hoje, todos nós já compartilhamos um sonho: fazer parte de uma banda de garagem, uma tão boa quanto a banda da Lindsay Lohan em Sexta-Feira Muito Louca. Tem algo que grita em celebração à nossa primeira juventude, à nossa rebeldia de adolescência, quando ninguém nos compreendia e tudo estava começando a mudar, mas solos de guitarra ainda podiam nos abraçar. 

Pra todos que tiveram seus lápis de olho e franjas lambidas pro lado, esse é um álbum pra você. 

Daisy Jones não precisava ser adolescente pra ser a maior das rebeldes, a menos incompreendida da turma. Acredito muito que Plastic Hearts poderia ser uma obra dela, só dela, em que ela usaria suas composições autorais pra propagar que prefere sua liberdade à prisão de uma banda (um amor) que nem sequer queria sua presença (I was born to run, I don't belong to anyone, I don't need to be loved by you em Midnight Sky), pra falar mal do Billy Dunne nas entrelinhas e ao mesmo tempo confessar seu amor na faixa seguinte. Sozinha, Daisy teria sido uma honestidade bruta e agressiva, assim como Miley foi nesse disco - mas sem nunca perder sua vulnerabilidade, que, mesmo escondida por trás de várias camadas de desilusão, ainda continua lá, intocável (High e Never Be Me, que falam sobre nada ser o suficiente, e sobre você mesma não ser suficiente pra ninguém).

WTF Do I Know, a faixa que abre o álbum, seria perfeita pra uma Daisy recém afastada dos The Six, sem remorsos, sem explicações pra dar, continuamente sustentando o discurso de que ela não precisa deles - não pode ser de fato o que ela acredita, mas sim pra irritar os que ficaram. A vingança favorita de um incompreendido é aparentar ter saído superior àqueles que não te levantaram, e eu acredito que um rompimento da Daisy (sem a carga emocional de seu envolvimento com Billy), poderia ter se dado assim. Mas como a história é outra, como temos nosso romance proibido de bastidores entre integrantes da mesma banda, a que melhor cabe na nossa narrativa mesmo é Angels Like You. 

Angels Like You é uma daquelas músicas que se encaixa com muitas coisas, diferentes coisas. Mas é definitivamente uma música que Daisy Jones escreveria sozinha, gravaria sozinha, só pra ter o Billy a acompanhando na guitarra no final. Mesmo que ele soubesse que grande parte do que está sendo cantado em sua frente é sobre ele mesmo. 

É um álbum sobre exaltar a si mesmo, sobre pontuar o quão superior e mais legal que todo mundo você pode ser - só pra depois quebrar essa expectativa confessando que você nunca vai ser a certa pra alguém, por estar constantemente se destruindo, por não querer mudar por ninguém. Nada mais rock 'n' roll do que pontuar seus defeitos e agarrar-se a eles, por não saber quem é de verdade debaixo de toda a persona rebelde que construiu depois de muitos traumas. Nada mais rock 'n' roll do que celebrar a liberdade com uma discografia quase que inteira compartilhando que sente-se preso em si mesmo. 

Daisy Jones é complexa o suficiente pra entender exatamente o que isso quer dizer.

Para ouvir também: Gimme What I Want, Hate Me, Golden G String

 04. Rumours - Fleetwood Mac


Vocês sabiam que esse tava vindo. 

Esse álbum é uma montanha-russa emocional de fofocas e intrigas - e o melhor é que não eram fofocas e intrigas externas. Era entre eles. Eles falando sobre eles, eles brigando via música, eles se obrigando a cantar e performar tais músicas. Que outro álbum te dá a oportunidade de experimentar uma música sobre amar seu atual namorado (You Make Loving Fun), o diretor de iluminação da banda, e ter seu ex marido não apenas sabendo disso, mas também tocando baixo na mesma banda? É bom demais.

Christine McVie e John McVie não eram os únicos que estavam separados e escrevendo sobre no mesmo ambiente de trabalho. Um só casal em conflito não era o suficiente. Entra Stevie Nicks e Lindsey Buckingham, sempre correndo juntos no precipício do amor e ódio, sempre em discordâncias, mas bons demais no que faziam pra saber que, pelo menos musicalmente, se completavam. Até contando a mesma história duas vezes, cada um em seu ponto de vista, nos ofereceu músicas individualmente muito boas: sobre a separação, Stevie fez Dreams, que já começa com a memorável abertura "Here you go again, you say you want your freedom / It's only right that you should play the way you feel it / But listen carefully to the sound of your loneliness", endereçado à Lindsey; Lindsey, por sua vez, a responde em Go Your Own Way com "how can I ever change things that I feel? / You can go your own way / You can call it another lonely day". 

Foi só em The Chain que todos os integrantes da banda colaboraram juntos, a única do disco em que eles cederam a fazer isso. A responsável por isso é a própria música: é sobre eles. É sobre eles já se odiarem em níveis inimagináveis, mas sobre não querer romper o vínculo, essa corrente que os unia segurando a única coisa que ainda tinham em comum: seu amor pela música que faziam. Tá tudo na própria música. Eles estavam ali, apesar do ambiente, por causa dessa corrente invisível que ainda os unia. If you don't love me now... definitivamente nunca mais amará.  

Os bastidores do processo da gravação do Rumours era caótico, problemático, doloroso e agressivo - eles não se suportavam mais, e ainda assim tinham de produzir dentro de um cubículo por dias e dias. Os sentimentos rompidos e a pressão de fazer-se vulnerável justamente na frente de quem te machucou foi algo que futuramente a Christine McVie caracterizaria como um "processo traumático". Stevie Nicks chegou a falar, também, que aquilo que eles estavam vivendo, naquele ambiente, não era normal: muita cocaína, muito dinheiro, e muita, muita angústia. Não precisa ser um grande entendedor de rock pra saber que essa é a fórmula mais antiga e mais bem sucedida de sucesso musical dos anos 70. Eles estavam no pior momento entre si, e é claro que isso resultou em um dos álbuns mais icônicos da história musical. 

Obviamente, o Rumours é nosso Aurora. 

Me limito a dizer só isso, sem apontar quem seria quem, que música seria o que. Se tem um resultado musical capaz de separar uma banda, esse seria o Rumours, como foi com o Aurora pra Daisy Jones & The Six. 

A essa altura eles já devem ter aprendido que quanto mais controverso e problemático, mais obcecados ficaremos. 

Isso é rock 'n' roll, baby. 

Para ouvir também: Never Going Back Again, Don't Stop, Songbird

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* Emma Blair é uma personagem da Taylor Jenkins Reid, do livro "Amor(es) Verdadeiro(s)", não tão memorável quanto suas irmãs;

** Mari e Babi, obrigada por contribuírem com seus conhecimentos de The Civil Wars!