Relatos do meu Gênesis
Frequento a igreja evangélica desde que me entendo por gente. Não foi necessariamente desde que nasci - minha mãe se converteu (ou: "migrou do catolicismo pro protestantismo", pra quem não entende o dialeto chaotic good dos termos da igreja) quando eu era criança, pequena demais pra lembrar exatamente como ou quando foi. Meu pai continuou sendo servo de deus nenhum, numa religião onde a única igreja dele aos domingos é a cerveja enquanto assiste futebol - e isso, sem surpreender a ninguém, resultou na óbvia e esperada separação dos dois.
Sempre que eu perguntava a alguém por que os meus pais haviam se separado, a resposta era a mesma: "sua mãe é crente, seu pai não é". Eu não entendia muito bem o que isso queria dizer, mas já tinha aprendido desde cedo a não perguntar demais quando o assunto era religião. Meus questionamentos oscilavam entre irritar e intrigar as pessoas a quem eu os direcionava, querendo saber pra quem exatamente a gente orava ("é pra Deus, pra Jesus ou pro Espírito Santo? Qual deles tá me ouvindo?") ou "se Deus sabe de tudo, por que ele criou a terra e colocou a maçã no jardim se ele já sabia que Adão ia comer?". Até hoje não sei a resposta concreta dessas perguntas. "Não tem explicação pros mistérios de Deus, Denise", todos eles respondiam. Pra uma criança curiosa, era uma resposta horrorosa.
Sempre gosto de relatar minha primeira experiência com a ansiedade, no auge dos meus pouquíssimos cinco, seis anos de idade, quando comecei a entrar em pânico pensando que, quando eu morresse, eu provavelmente iria pro inferno, porque eu não era uma criança boa (nota da autora: a auto-sabotagem e auto-depreciação chegaram cedo pra essa que vos fala). Era um desespero assustador toda vez que eu soltava uma mentirinha dizendo que não, não fui eu que comi o biscoito guardado no armário - e, do nada, BOOM, meu nome já marcado no livro do inferno. Demorei anos, e anos, e anos, tentando me desvencilhar dessa agonia de achar que eu não podia errar de forma alguma porque, em algum momento no fim dos tempos, da maneira sobrenatural mais produção baixo orçamento da CW possível, eu iria pagar com minha alma.
É verdade quando falam que o que já tá ruim tende a piorar - porque daí foi só ladeira abaixo. Pra alguém que cresceu dento da igreja evangélica, com pastores que tanto pregaram a liberdade e alegria infinita dos chamados filhos de Deus, eu, por muito tempo, só sentia uma coisa: medo. Eu tinha medo do barulho que o pessoal fazia na Igreja. Medo de quem pulava, gritava, desmaiava estirado no chão (eles chamavam de arrebatamento, eu chamava de "meu Deus do céu alguém liga pro médico que a mulher morreu"). Medo de quando eles falavam "deixa o Senhor falar com você", e eu pedia, em silêncio, sozinha em casa, pra que Deus não falasse comigo porque eu iria chorar com uma voz do além querendo se comunicar de noite. São incontáveis as vezes que eu chorei e tive ataque de ansiedade quando minha mãe não atendia o telefone, porque eu achei que Jesus tinha voltado, levado a igreja (nunca houve dúvida nenhuma na minha cabeça que minha mãe seria uma das pessoas salvas) e eu tinha ficado. O famigerado filme Ultimato me trouxe war flashbacks dessa época, quando minha vida e saúde mental eram a imagem perfeita da galera que ficou na terra com traumas psicológicos. Deus era o Thanos e o arrebatamento era o estalo. Os que viraram pó eram os arrebatados. Na primeira sessão que assisti, lembro de virar pra alguém e comentar "nossa, muito apocalíptico esse filme né kkkkk....". O kkkk... eram risos nervosos.
Cresci sentindo tanto medo da experiência espiritual e de um Deus supremo que até esqueci de sentir medo do diabo e seus afins.
Depois de crescer o suficiente pra entender que ninguém poderia me explicar o que não entendia, meu medo já não era mais o sobrenatural ou o inexplicável. Meu medo eram as próprias pessoas, a aversão aos meus princípios, a crueldade em palavras com quem tanto diziam amar, a pregação baseada em se colocar como superior e condenar todo mundo que parece ser diferente. Hoje, parando pra pensar, não foi meu medo atrelado ao desenvolvimento da minha precoce ansiedade que me tirou da igreja - foi o próprio comportamento humano. Mas, por mais que eu sempre seja a primeira na fila pra criticar a hipocrisia e a falta de caráter do cristão que se escora no cristianismo, hoje não é sobre isso.
Assistindo Good Omens (ironicamente num domingo, o dia de Deus), ri com uma satisfação absurda ao perceber que eu sou, de fato, o anjo da história. Sem grandes spoilers, posso te dizer que o Aziraphale tá tão preocupado em fazer o certo, em obedecer os ordenamentos divinos, e com tanto medo de errar nisso, que ele é uma grande bolha de ansiedade, implorando em voz baixa "por favor, não briguem, a gente pode resolver isso na conversa - pra que um anti-cristo?". Eu fui (e sou?) essa persona. Cresci condicionada a agir e pensar com pureza, a representar poder divino, a buscar pela minha salvação e negar o que tentaria me desviar desse caminho - mas às vezes eu só queria comer sushi sem essas preocupações na minha cabeça.
Hoje em dia, não tenho mais medo. O cristianismo é parte de mim - foi o que eu aprendi, foi com o que eu cresci. Demorou muito pra que fizéssemos as pazes, pra que eu parasse de culpá-lo pelas minhas próprias ansiedades, para que eu parasse de condená-lo pelo discurso humano. Gostando ou não, eu tive de aceitar que sou uma pessoa espiritual, pois toda minha concepção de existência e propósito foi moldado nessa ideia desde que eu aprendi a falar. E, como ser espiritual, eu preciso acreditar em algo. Eu preciso me confiar que alguém, alguma coisa, num plano superior, tá com tudo anotado num bloquinho. É exaustivo ser, sozinha, a pessoa que tenta organizar o bloquinho sozinha.
Numa reviravolta satisfatória dos fatos, como o bom Aziraphale que sou, encontrei um lugar que posso exercer minha espiritualidade sendo eu mesma, de um modo que foge do tradicional maçante e da hipocrisia que tanto condeno. Hoje em dia, pra mim, é mais real. É mais humano. É mais sobre o aqui e agora, tentando fazer o que a gente pode pra ter uma essência boa. É raro que eu esbarre hoje com a manifestação sobrenatural do divino, aquelas que envolvem rodopios e línguas estranhas. Longe de mim falar que existe um modo certo e um modo errado - o que existe é algo que funciona melhor pra mim, que me faz bem. E o que me faz bem, hoje, é poder me ver feliz vendo outras pessoas felizes, buscando uma energia que simplesmente não é daqui.
É um processo lento que ainda tenho que me esforçar pra acostumar. Minhas incontáveis (i n c o n t á v e i s!) críticas ao papel do cristianismo hoje e à igreja como instituição às vezes falam bem mais alto do que minha vontade de fazer parte disso tudo. Mas as coisas acontecem de formas doidas.
Em algum momento da semana passava eu tive outra crise de ansiedade. Meu quadro já tá estável faz tempo, graças à intervenção da psiquiatria (adendo: Deus não é psiquiatra nem terapeuta, procurem profissionais), o que significa que qualquer pequena crise é fácil de ser lembrada - porque ela é rara e única. Nessa em específico, lembro de já estar deitada quando uma nuvem negra de pavor se dissipou em cima de mim, e eu só conseguia pensar que um dia eu iria morrer, e nada disso faria sentido algum, e que todo mundo ia deixar de existir, e eu iria deixar de existir e, meu Deus, depois o que acontece?céu ou inferno e qualquer um a gente vai viver pra semore?praSEMPRE ETERNIDADE?nao cosnigo respirar?
fim.
Foi assim até eu conseguir normalizar minha respiração. Ao relatar isso pra minha mãe no outro dia, a resposta dela eu já sabia: "você tem que entregar essas ansiedades pra Deus". Não sei se entreguei (respondi "aff mãe" e fiquei quieta), mas alguém pegou. Hoje fui à igreja, uma que não tem absolutamente nenhuma semelhança às nuances relatadas na igreja que eu cresci, e imaginem minha surpresa ao abrir a bíblia e encontrar um texto que dizia mais ou menos assim (tradução minha, pois minha bíblia é em inglês - mas aí é outra história):
24 Vou lhes dizer a verdade: se um grão de trigo não cair no chão e não morrer, ele vai continuar sendo só um grão de trigo. Mas, se ele morrer, dará muito mais trigo. 25 Quem ama demais a própria vida vai perdê-la, enquanto o homem que odeia sua vida nesse mundo vai continuar com ela pro resto da vida.
Talvez não signifique nada pra ninguém - talvez as outras pessoas na igreja hoje nem tenha absorvido esse pedaço do texto do mesmo jeito que eu absorvi. Mas a gente é subjetivo mesmo, então isso não me assusta. Na minha cabeça isso funcionou como uma resposta de que eu não sei de nada com nada, e que, se existe morte, é pra existir vida. Religião não é terapia, mas pode ser terapêutico.
Como o belo emaranhado de energia espiritual que sou, já me acostumei com a ideia de que eu sou quem sou - e o que eu acredito (e não acredito) também é parte disso. Uma das coisas mais bonitas do cristianismo, pra mim, sempre foi Cristo em si. Tenho pra mim que Jesus, o maior socialista e precursor dos Direitos Humanos de seu tempo, ficaria feliz com a imagem que tenho dele hoje.
(P.S.: não sofram tanto de culpa, crianças. Ninguém é 100% bom. Até o Aziraphale, que é um anjo, tem um melhor amigo que é um demônio. Nós, seres humanos, geralmente somos metade/metade de cada um.)
ainda completamente contra a bancada evangélica
- D.