MET Gala é um museu a céu aberto


Não sei muita coisa sobre o MET Gala em si - exceto o que fora legalmente aprovado a ser demonstrado no filme Oito Mulheres e um Segredo (grande evento cinematográfico). Por falar em ótimos filmes, tenho certeza que um Diabo Veste Prada 2 abordaria o mais caótico evento da temporada, com Emily beirando um ataque do pânico e Andrea assistindo pela TV, se achando tão melhor do que tudo aquilo. Sei tão pouco, que até pouco tempo (ontem), eu realmente acreditava que aquelas pessoas eram convidadas a estar ali, pela própria Anna Wintour - alguém que eu suponho ter apenas seu nome atrelado a tudo, sem de fato decidir nada (preces e orações aos estagiários da Vogue). O que Anna decide por si, na verdade, é quem ela gostaria de ver de longe num lance de escadas, o filtro sendo famosos com os quais ela vai com a cara ou não, um trabalho deveras exaustivo. Caso selecionado, sua entrada é confirmada mediante PAGAMENTO (sim). 

O ingresso custa cerca de um 1kg de carne coxão mole aqui no Brasil (30 mil dólares). A não ser que, é claro, o artista seja selecionado a dedo por grandes marcas para entrar como modelo da própria grife, uma propaganda em troca de uma mesa com tudo pago, como uma vitrine humana da Versace - assim como a Pfizer propôs ao Bolsonaro. Mas isso, é claro, é reservado para artistas classe A, famosos que a mídia de fato Quer Ver -  o que me faz acreditar que as Kardashians/Jenners nunca pagaram um ingresso na vida, e isso não faz o menor sentido, assim como rico ganhando coisa de graça depois de ficar rico. 

Mas já estabelecemos que nesse blog nós não gostamos muito de falar de artistas classe A, nosso favoritismo sendo entregar furos de Classe C. Uma classe que tanto sofre, e que ainda tem de pagar ingresso de 30 mil dólares - fora roupa, maquiagem, passagens e jóias, um esforço subordinado apenas àqueles que não são importantes o suficiente para entrar nos melhores amigos da Anna Wintour. 

Aparentemente todo o dinheiro arrecadado é utilizado como fundos para o departamento de vestuário do Metropolitan Museum, o que, cá pra nós, me parece uma conversa fiada de um evento que UM DIA foi um baile beneficente e pareceu legal o suficiente para se tornar anual. Afinal, o MET não é conhecido pelo seu sucateamento e necessidade de constantes reformas, e, mesmo que fosse, ainda dava pra sobreviver com o valor meia entrada do ingresso atual. 

O que acontece lá dentro é misterioso como o verdadeiro propósito da maçonaria, ou no que consiste o fim de semana de um EJC (Encontro de Jovens com Cristo). Vez ou outra recebemos pequenos detalhes do que tá rolando (foto de prato de comida horrível, vídeo de 15 segundos dos anfitriões, cenas montadas em Oito Mulheres...), mas nunca a informação completa. O evento mais exclusivo dos Estados Unidos, nas palavras da própria Debbie Ocean (Sandra Bullock). Sei que em algum ponto tem uma exposição, e sinto pelo curador responsável por ela, porque é óbvio que ninguém liga. A verdadeira curadoria é de looks, no próprio tapete vermelho - um evento em que se paga não necessariamente para entrar, mas sim para posar na entrada. 

O tema deste ano (Na América: Um Léxico da Moda), teve o intuito de celebrar a moda norte-americana, dessa vez dividido em duas partes, para compensar nosso ano que não foi, 2020. Minha opinião pessoal é que o MET Gala sobreviveu tão bem à passagem do tempo porque a expressão artística da moda é uma que não morre. Não só isso, a moda como arte consegue relacionar todas as vertentes anteriores a ela, vide o MET de 2018 que trouxe a influência da Igreja Católica na moda (barroco, idade média) e o MET de 2019, com o tema Camp (dadaísmo, surrealismo). Não importa qual o tema, sempre terá o look que poderia ser a representação pós-contemporânea do mictório de Duchamp em forma de roupa, ou a Capela Sistina de Michelangelo. 

       
Ariana Grande, 2019, por Vera Wang

O que eu mais gosto de acompanhar na timeline numa noite de MET Gala é nossa comunhão em aceitar que todos nós, automaticamente, nos transformamos em grandes críticos de moda e cultura. Nenhuma opinião é desmerecida, todos nós mantendo nossos cargos na mesa dos jurados que não existem no evento original, mas deveriam, pois tornaria tudo mais divertido. Pra que inventar que o MET precisa de ajudar para manter fundos quando podem transformar todo o evento numa gincana de quem vestiu melhor, quem produziu melhor? Por que não transformar o baile no que ele realmente é, um evento da Capital de Jogos Vorazes? 

O MET não é um evento em que o principal é estar bonito. Você pode estar, porque beleza é um estado de espírito, mas não é esse o ponto. O ponto é essa competição silenciosa entre convidados e o tema estabelecido, como uma festa de Halloween em cidades não conhecidas pela celebração de Halloween, cuja melhor fantasia recebe um prêmio de 100 reais no final da noite. É sempre satisfatório esbarrar em alguém que entregou compreensão do tema e beleza, como uma redação bem estruturada do ENEM - mas é sempre mais divertido ler umas receitas de miojo.     

Desejo vida longa a todas as equipes que trabalharam e estruturaram um conceito para todos os looks a fim de abraçar o tema de 2021, já que do lado de cá a proposta de uma homenagem à moda americana me entrega uma infinita tela branca. O óbvio me ganhou pela falta de ideia própria, e por isso que, num primeiro momento, meus favoritos do tapete vermelho foram os mais clichês e mais fáceis de deduzir a ideia por trás - a arte clássica, quando o significado era o que estava em tela e nada mais. Isto é uma pintura de uma mulher, uma Madonna, e não tem muito o que desvendar além disso. Esta é uma pintura de Napoleão, e o propósito era ter uma figura de Napoleão. Às vezes a arte é só o que ela se propõe a entregar, plano, simples e óbvio, sem uma grande tese por trás. Eu consigo compreender a inspiração na Marilyn Monroe, na atmosfera vintage dos anos 70 e da óbvia presença do jeans na cultura americana, e a referência à Audrey Hepburn em My Fair Lady - o que não é muito difícil, todo mundo sabe quem é a Monalisa. 

Billie Eilish veste Oscar de la Renta
Ben Platt veste Christian Cowan
Kendall Jenner veste Givenchy


Não significa que é entediante, ou que tem menos valor - só significa que é algo feito para bater o olho e saber. E tá tudo bem, arte assim é uma delícia também, como um filme de sessão da tarde: algo mais agradável para uma sonequinha pós almoço do que bater cabeça com clássicos franceses numa quarta-feira. 

A moda é uma expressão artística extraordinária, não só por comunicar quem gostaríamos de ser, mas por conseguir atravessar todas as linhas do tempo de sua própria evolução num evento só. Se não fosse assim, todos os vestidos seriam uma homenagem aos anos 20, e o tema teria de ser adaptado para "Festa no Gatsby", a fim de que ninguém passasse vergonha internacional. Interpretação e subjetividade segue sendo nossa mais preciosa ferramenta, e é mágico como nossas mentes pensantes tão limitadamente ilimitadas conseguem criar conceitos do zero, conceitos esses tão bem trabalhados que o propósito não é o resultado em si, mas a execução pensante desse. 

Para mim, é essa a magia da arte pós-moderna, onde a obra de arte não é sobre o resultado ser um ovo cru numa plataforma giratória, mas sim no processo de pensamento do que significaria aquele ovo, naquela plataforma, naquela exposição. (Este é um exemplo real, o ovo cru giratório estava no MASP em 2017). 

Minha piadoca favorita do mundo das artes é aquela em que um estudante esqueceu de entregar o trabalho para exposição e, em desespero, posicionou-se do lado do material de limpeza do faxineiro, numa cadeira quebrada que estava sendo recolhida para manutenção, e sustentou tão bem sua visão para tal instalação que saiu com nota máxima. Muita gente sente vontade de arrancar os cabelos com essa história, seja ela verdade ou mentira. É a mesma gente que olha uma tela abstrata e diz que poderia reproduzir aquilo. 

E isso não é MÁGICO? Para muito além da cadeira quebrada, da lata de lixo, e do ponto de tinta numa tela branca, não é MÁGICO que nosso entendimento e compreensão podem ir além do que o resultado propõe? Não é mágico que possamos viver num mundo em que eu ache um outro conceito para uma cadeira quebrada, além de obviamente ser uma cadeira quebrada? Não é incrível que eu consiga ter habilidades básicas o suficiente de entregar o mesmo ponto colorido numa tela branca, mas com um significado completamente diferente? Vocês não sentem o coração BORBULHAR com todas as possibilidades de intenção e compreensão que o ser humano tem, ou poderia ter? 

Arte pós-moderna, man. Ovos giratórios. Por aqui o efeito é semelhante ao efeito da ida ao banheiro no MET Gala: adrenalina pura, fruto de 3 carreiras de pó milimetricamente dispostos na pia. (O que vocês acham que eles tanto fazem lá dentro? Procurem fotos de artistas com pupilas dilatadas, é divertido). Esse conceito abstrato é minha cocaína. 

CL veste Alexander Wange
Grimes veste Iris Van Herpen
Rihanna veste Balenciaga

O meu casamento com a arte é um que sobrevive aos embates do tempo e da monotonia rotineira pela sua constante tentativa de acolher o ambiente ao seu redor. Afinal, o que é uma nova vanguarda em construção se não for a luta e consolidação do entendimento político-social à sua época? Não tem como desassociar as duas coisas. Uma arte conservadora é uma arte pobre, que não abrange as peculiaridades de compreensão e sensibilidade que o processo artístico exige. Em pouquíssimas situações da minha vida eu consegui me expressar tão claramente quanto pedaços artísticos conseguiram fazer por mim, sem que eu sequer fosse obrigada a usar minhas próprias palavras. 

O que eu devo à arte é isso. É o presente que me fora oferecido, anos atrás, de compreender toda a subjetividade desse universo como uma ferramenta de auxílio para que eu pudesse ser eu, descrita, vista e lida de tantas formas diferentes, mas autênticas. É um sentimento, um que não consigo pontuar ou qualificar - uma inclusão que o meio social falha em oferecer, mas a arte nunca. 

Esses aqui, eu tive que digerir por mais um tempo. Não foi algo óbvio, claro e direto como os 3 primeiros - e nem poderia ser. Expressões artísticas com um subtexto mais complexo geralmente são os últimos a serem esclarecidos - para nós, telespectadores. Para eles, os acessórios entregando a mensagem, essa é clara desde a idéia. 

 

Elliot Page (foto 01) fez sua primeira aparição depois de apresentar-se como Elliot, seu primeiro evento público depois da transição. Vi diversos comentários em que a internet dava passe livre para que o Elliot usasse um terno simples, porque "é o Elliot, e ele é um anjo, então o terno preto simples está perdoado", mesmo que não haja algo que nós, como internet, odiemos mais do que o risório terno preto na noite mais importante da moda. Ainda assim, essa parecia ser a mensagem: incontáveis homens cis não se dão o trabalho de vestir algo além do terno comum. Elliot, um homem trans, se sentiu à vontade de ter sua primeira aparição fazendo o mesmo. Nem me veio à mente o propósito da flor verde na lapela. Até que eu descobri.

Um cravo verde na lapela já fora símbolo de Oscar Wilde, posteriormente de seus amigos e admiradores, transformando-o em algo que se tornou uma silenciosa e secreta ferramenta de identificação da comunidade LGBTQ+ à época. Na noite mais importante da moda, Elliot, pela primeira vez publicamente como Elliot, vestiu um terno simples. Um terno simples que muitos como ele ainda não tem a chance de vestir. E, junto disso, carregou próximo ao peito uma referência direta à Oscar Wilde, um poema condenado e preso por exercício de sua sexualidade. 

Oscar Wilde era conhecido por andar com um cravo verde na lapela - não somente como forma de identificação dentro da comunidade LGBTQ+, mas também pela compreensão de que uma flor com uma cor não-natural poderia ser uma a existir e resistir. Elliot Page não utilizou um cravo verde na lapela, e sim uma rosa verde, e pra mim essa foi a maior poesia da noite. 


"Ele gosta de mim. Sei que gosta. É claro que eu o lisonjeio demais, e sinto um prazer estranho em dizer coisas de que estou certo que vou me arrepender. Como norma, ele é delicado comigo, nós nos sentamos no ateliê e conversamos sobre uma porção de coisas. De vez quando, porém, ele é muito descortês, e parece sentir prazer em me causar dor. Nessas horas, Harry, sinto que sou tratado como uma flor de lapela, uma peça de decoração para deleitar-lhe a vaidade, um ornamento de um dia de verão." (O Retrato de Dorian Gray, Oscar Wilde)

Jeremy Pope (foto 02) compareceu ao MET com uma roupa totalmente de algodão branco, com uma longa calda que transpassava em seu ombro, de modo a parecer uma gigante bolsa tiracolo. Com execução de Dion Lee, a roupa trouxe a memória da influência norte-americana em um tipo de vestimenta que uma noite como essa tenta esconder por baixo dos panos, ocasião em que Jeremy, genialmente, não só vestiu-a como também andou sob o tapete vermelho. A roupa faz alusão direta às vestimentas de pessoas pretas escravizadas nos Estados Unidos, trabalhando forçadamente em plantação de algodão, os longos sacos utilizados na colheita a tiracolo. 

É um lembrete genial de que, muito embora hoje existam celebrações gigantes de moda e cultura a fim de exaltar a história americana, essa história é carregada de herança escravocrata e sangue inocente. Foi essa a roupa e proposta que me deu minha foto favorita de ontem: não nas escadarias, não do evento em si, mas da representação do que pode-se criar para entregar uma mensagem:


Nikkie de Jager (ou Nikkie Tutorials, que surpreendentemente não é um sobrenome) (foto 03) está na internet como guru de beleza desde que eu passei a ter acesso à tecnologia. Foi só recentemente que Nikkie deixou de lado os pincéis de maquiagem pela primeira vez para tratar de um tema que por muitos anos manteve privado: sua transexualidade. Nikkie se viu forçada a tratar sobre o assunto publicamente após receber ameaças que sugeriram revelar "seu segredo" ao mundo, o silêncio custando um preço além de monetário. Nikkie lidou com elegância e honestidade, e escolheu reestabelecer o controle de sua própria história, como deve ser. 

Em um MET Gala que abriu as portas para influencers e tiktokers, Nikkie fez jus à oportunidade de estar ali. Podendo atravessar a escadaria do Met só com um look bem feito e bem montado, Nikkie escolheu permanecer com sua elegância e honestidade de sempre: o belíssimo vestido entregou uma homenagem à Marsha P. Johnson, uma travesti ativista de direitos LGBTQ+ nos Estados Unidos nos anos 60, e uma das principais figuras da Rebelião de Stonewall, marco da revolução e liberação LGBTQ+ em Nova York, ocorrido na data que hoje simboliza e comemora o Dia da Visibilidade LGBTQ+ (28 de junho). 

No corpo do vestido, Nikkie exibe uma faixa com os dizeres "Pay It No Mind". Quando questionada sobre o que significava o "P" em seu nome, Marsha P. Johnson afirmava ser P de "Pay It No Mind". Era sua resposta padrão quando perguntavam se era homem ou mulher. Em tradução livre: "Não Importa".

             

O simbolismo da rosa verde na lapela, da capa que se transforma numa sacola, nas flores e faixa com dizeres políticos, é o que ainda sustenta essa noite como uma noite não somente especial, mas essencial. 

É essencial na manifestação socio-política que parece ser silenciosa quando posta no meio de tantos vestidos da Versace em modelos magérrimas, mas que ainda assim está ali. Essencial na figura do Lewis Hamilton, que comprou uma mesa inteira para convidar e dar espaço a jovens estilistas negros em ascensão, todos vestidos em seu próprio design. 

Analisar as expressões artísticas dos convidados do Met Gala é o evento em si. É de fato como entrar num museu e andar de ala em ala, absorvendo as obras conforme elas se apresentam a você, entrando numa profundidade que te arrasta para uma nova visão além da superfície. 

Todos sabemos quem é a Monalisa, concordamos sobre isso. Mas requer sensibilidade para tentar descobrir o que Da Vinci tentava falar através de pinceladas, e que mensagem a imagem poderia guardar para sempre, sem precisar de palavras.  

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