Ninguém quer ouvir a sua voz (e outras reflexões)


Durante algum momento da mudança de comportamento social juvenil, a consolidação do entendimento da geração Millennials como um estilo de vida e o fim de Gossip Girl, uma verdade foi compreendida e propagada pela humanidade: você tem uma voz, e deveria usá-la. Musicais inteiros foram escritos, séries de tv foram planejadas, contas de Instagram comparecem em todos os extremos, Youtube virou uma carreira consolidada, e opinar - na Internet ou na vida real - nunca foi tão, tão fácil. "É a minha voz!", você deve ter pensado alguma vez, "e eu tenho algo a falar". 

O script de A Star is Born (roteiro de Bradley Cooper & co), disponível online, é surpreendentemente um compilado perfeito de metáforas e reflexões sobre usar sua própria voz. Em minha rápida e leiga análise, conscientemente ou não, o filme inteiro acaba sendo sobre a incessante busca de falar e ser ouvido. Em uma das minhas falas favoritas, por exemplo, Jack diz a Ally que talento tem em toda esquina, que provavelmente todo mundo que você conhece é talentoso em alguma coisa - mas que ter algo a dizer e ter pessoas te ouvindo era algo bem diferente. Posteriormente, ao ser abordada por um produtor musical, Ally também o escuta dizer que "há pessoas que precisam ouvir o que você tem a dizer musicalmente" - que é um orgasmo pra qualquer artista.

Não somente, quando Ally tem seu debut no mundo pop - agora escondendo-se atrás de uma persona robotizada pela indústria que já engoliu sua voz original -, Jack volta ao centro de todos os seus discursos durante o filme ao dizer que "tudo o que você tem é você mesma, e eles te escutam agora, mas não vão escutar pra sempre".  

"Então diga o que você tem a dizer... porque a forma como você diz é coisa de anjo". 

Romance. <3

Cresci e me criei romantizando a ideia de entregar pro mundo o que eu sentia e acreditava - porque era importante que eu fosse ouvida. Na vida adulta, reforçar essa ideia era inevitável, uma vez que fui uma criança silenciosa, amedrontada com a simples menção de ser obrigada a falar meu nome em público. Quando crescendo, as pessoas nunca me ouviram - mas eu tinha algo a falar. E ao adentrar na juventude eu só... descubro que posso? Com mídias e músicas e solos do Ben Platt não somente me validando como me incentivando a falar tudo que eu quisesse? A distribuir todos os meus pensamentos? Parecia mágico.

Mas todo mundo tem algo a falar. Todo mundo. Aprendi isso depois de anos me sentindo especial, achando que só eu tinha monólogos internos bons o suficiente pra entregar ao mundo, que só o meu ponto de vista era iluminado. Só foi depois de muitos embates via stories do Instagram sobre política e amizades vítimas de opinião disfarçada de "eu sei mais do que você" que eu percebi que - É. 

Ninguém quer, na verdade, ouvir a sua voz. 

Depois de anos e anos me criando na Internet, concluí que o que todo mundo quer, na verdade, é um amaciante de ego. Sabe lavar a roupa e ficar com cheirinho de lavanda? Esse tipo de amaciante. Se a sua voz está de acordo com o que eu acredito, com uma opinião minha que já está formada, então eu escuto, pois vale à pena. De todos os textos que já escrevi, de todas as colocações que já fiz, nas diversas vezes que me responderam em agradecimento às minhas palavras... não era exatamente um agradecimento pela minha voz. Era um agradecimento por minha voz ser exatamente o que você queria ler. Ou o que você estava pensando e não soube como dizer. "Minha voz", essa voz que me coloca gritando por tantos lugares, não estaria sendo apreciada e louvada se não fosse só... um compilado de opiniões que já eram suas.

Dias atrás fiz um formulário com questionamentos sobre política, com perguntas básicas sobre entendimentos pessoais sobre interpretação de direita e esquerda, o que entendiam por fascismo e comunismo, se o PT tinha sido um partido de extrema esquerda. Vocês sabem, esse tipo de coisa que a gente já sabe a resposta. O intuito era analisar os resultados e escrever sobre como o falatório político (aqui, claro, tendenciosamente me referindo à extrema direita) usa de termos e ideias que o orador sequer sabe o que significa. Eu não pude, no entanto, publicar essa enquete no Twitter. Porque a resposta seria a mesma. Uma pesquisa em que 100% do resultado são pessoas entre 16-29 anos com tendências pendendo pro lado esquerdo e concordando que o governo atual flerta com o fascismo - o que é verdade, é um fato, mas concordância total de dados? Numa pesquisa? Não seria uma pesquisa, seria uma conversa de bar com meu círculo de amigos.

Será que a gente viveu o suficiente na Internet não pra virar herói, mas pra virar... exatamente o que Eles dizem que nós somos? Eles - uma corporação de homens dos anos 80, mãe e tias fofoqueiras -, que nos repreenderam nos almoços em família com "lá vem a doutrinada", que prometeram que todo e qualquer discurso jovem fundamentado em posts de Internet era "genérico"... Vivemos por aqui o suficiente pra dar razão à Eles?

Nossa série favorita do momento, The Bold Type, é tão explicitamente criada e pautada em dar voz a todas as questões sociais e midiáticas possíveis de caber num espaço de tempo de 40 minutos que, por vezes, dei uma encolhida quando me serviram o tabu bem quebrado. Me pergunto quando nós passamos dos adolescentes com a necessidade de gritar sobre feminismo e suas subdivisões pro nosso desconforto físico ao esbarrar com algo que é woke demais para 2021. A problematização da problematização, não é assim? 

Internet, a gente entrou num paradoxo. 

Nosso buraco de minhoca nos levou de um extremo a outro. O que antes era um distanciamento necessário e orgulhosamente bem feito dos preceitos e entendimentos dos nossos pais, hoje é só... exatamente o mesmo, só que no mundo invertido.

Descobri então que a filosofia tem um rolê pra explicar isso - porque é claro que tem, filósofos sendo filósofos. Aconteceu de Hegel um dia espalhar por aí algo conhecido como "Teoria da Dialética", dialética essa que era a raiz pela qual nós tínhamos a capacidade de produzir conhecimento. Aconteceria assim: primeiro você tem uma tese (uma idéia, um pensamento). Depois, você desenvolve uma antítese, que é um pensamento contrário à sua tese original. No fim, acontece a síntese: pegue um pouco dos dois mundos, filtra a tese, filtra a antítese, forme sua própria opinião e seja feliz. 

A gente ainda filtra, será? 

Sei que tem um compartimento obscuro da comunidade online que ficou preso na antítese sem chegar em conclusão alguma. Sei também de muita gente da vida real que sequer passou da tese. 

Deve ter outro raciocínio filosófico de algum alemão por aí que diga exatamente isso, muito embora eu fique devendo essa pesquisa, mas não é o estancamento da humanidade quando a gente só para de formar novas sínteses? Um processo de análise que é feito só uma vez e nunca mais revisto ou reavaliado só sugere que nossa tendência é emperrar no espaço tempo da humanidade, que nunca para de andar e andar e andar e oferecer novas ideias e novas conclusões e novos entendimentos e novos desenvolvimentos, pra sempre e sempre e sempre - como deve ser qualquer linha temporal.

Foi um susto perceber que a minha voz, essa que eu tanto me orgulhava ao dizer que tinha, era só um amontoado de outras vozes, que eu li por ali, ouvi daqui, acreditei como sendo certo e fatídico por vir de pessoas que corroboravam para um pensamento que estava em mim, mas que também veio de outros lugares, e assim vai. A essa altura, eu nem faço ideia do que o lado oposto ao lado das minhas ideias prega por aí - porque eu nunca vejo. Esse conteúdo não chega até mim.

Já que estamos aqui discutindo sobre Internet e afins, um fato engraçado é que esses posts não chegam até mim ou até você porque, num trabalho minucioso de sistema e controle humano, esses algoritmos não foram selecionados pra você. Vocês nunca se perguntaram COMO as pessoas ao seu redor não viam as mesmas notícias e as mesmas críticas ao Bolsonaro que você via? Literalmente por isso: porque elas não veem. Não é um conteúdo que chega até alguém que tem o algoritmo milimetricamente calculado pra mostrar foto de arma e vídeo de pastor pregando. Percebe? A gente empacou na rede das teses.

E, de novo, o negócio da voz: como eu posso esperar que meus gritos de indignação contra o governo sejam compreendidos por seguidores alienados, se são seguidores! alienados!? O que eu espero que aconteça ao publicar um story atrevido escrevendo meus sentimentos sobre a administração da prefeitura? Que eleitores do prefeito cheguem até mim e respondam "é verdade mesmo, o que você disse faz sentido, mudei de opinião"? Quando que isso aconteceu, tipo, na história? O que vai acontecer quando eu publicar um texto chamando eleitores do Bolsonaro de burros genocidas? Essa minha voz que sente tremores de raiva e vontade de cuspir fogo pelos dedos ao escrever sobre política, vai chegar até quem? 

Vai chegar só até aqueles que pensam igual a mim. 

E sendo assim, a gente tá conversando, de fato? Na nossa pesquisa social, com nossos resultados 100% em igualdade, a conclusão é qual?

Mesmo assim, acho ótimo jovens com didática o suficiente pra destrinchar pautas sociais num auditório. Acho genial produtores de conteúdo, escritores, [insira aqui qualquer cargo na internet] que tiram do seu tempo pra compartilhar seus entendimentos (suas sínteses!), a fim de que novas pessoas formem suas próprias sínteses. Mas fico me perguntando se sou uma delas. Do que adianta gritar, gritar, e gritar - se meu auditório está vazio? 

E um conflito desses não tem como solucionar - não cabe a mim, não está em meu poder. Não posso cobrar que todo mundo entenda e exerça minhas sínteses se nem todo mundo passou por minhas teses e antíteses. Sabe? É aquilo de sempre: não dá pra esperar que todo mundo esteja pronto pra algo que só você está pronto. E é ótimo sentir que, sim, existem pessoas prontas junto comigo, e no nosso vórtex temporal estamos todos no mesmo tempo e timbre - mas a gente sempre quer um coral inteiro, né?

Se nada do que eu falei faz sentido, a culpa é do Hegel. 

E ainda assim cá estou eu, escrevendo tudo isso num blog pra vocês lerem. 

Desconsiderem tudo que eu falei, então.

______

Para Vogue, Selena Gomez dia desses que declarou que cantar ao vivo é difícil, mas que ela absolutamente vai aceitar qualquer oportunidade que a coloque em cima de um palco se isso resulta na propagação do que ela tem a falar. "Não me importo em como minha voz vai soar, só em passar minha mensagem", em tradução livre. Tal declaração me soou curiosa por diversas motivos, de "se você é cantora e seu trabalho está sendo cantar, COMO você não liga para como sua voz irá soar? É tão fácil pra alguns..." até "uau, jovens são intensos, mas jovens artistas...". 

Esse texto não tem uma conclusão. Mas eu vou mesmo pegar uma observação sobre extensão vocal e aplicar como uma reflexão pessoal e interna?

Você sabe que sim. 

______


Para receber os posts assim que publicados - diretamente na sua caixa de email - basta se inscrever aqui :)!

______

 

(A Star Is Born, 2018)