Desde o dia que saí da maternidade até por volta dos meus 9, 10 anos de idade, eu tinha uma casa. Não simplesmente uma casa, uma casa, daquelas que tem mais história que cômodos e mais lembranças que espaço. Quando minha avó morreu e a casa pareceu grande demais pra só (naquela época) uma mulher e uma menina, o processo todo de mudança não me pareceu tão importante. Estava mais preocupada em saber se nos possíveis apartamentos que agora eu moraria tinha piscina e/ou playground, e se meu quarto ia ser grande o suficiente - não tão grande quanto o último, pois é o que acontece em mudanças de casa pra apartamento. Tudo numa versão em miniatura de algo que você já teve em tamanho real.
Não sei ao certo em que ponto da minha vida eu achei que qualquer lugar seria melhor que esse. "Mas você quer ir pra onde, quais seus planos?", já me perguntaram diversas vezes. Não sei, não tenho. Só sei que quero sair.
A sensação de se sentir presa e incapacitada de atingir seu real potencial e culpar o ambiente ao redor sempre foi muito palpável pra mim. Mesmo ciente de que mudar geograficamente não é mudar espiritualmente, e que traumas, medos e ansiedades me acompanhariam daqui até outro continente - mesmo compreendendo tudo isso, sair sempre me passou uma ideia de nirvana, de (re)começo, de "finalmente ser quem eu quero ser". No lugar onde nasci e me criei, onde minhas raízes continuam fortes demais para que eu consiga me livrar delas sem sentir dor, ser feliz e ser livre não parece uma possibilidade pra mim. Só parece uma contínua e infinita repetição do que sempre foi minha rotina, composta de medíocres ações que são resultado de escolhas que não foram minhas, e de dedicação meia boca, e da pura e bruta necessidade de sobrevivência em uma realidade que não sinto que é a minha.
Já me disseram incontáveis vezes que essa ideia que construí - a de necessitar sair por aí pra finalmente me encontrar - é fadada ao fracasso. Que quem faz minha própria felicidade sou eu, não o lugar que estou inserida. Que isso é fugir dos próprios conflitos e dar as costas pra algo que pode (e precisa) ser lidado diretamente. Talvez. Talvez eu só sou medrosa demais pra admitir que na verdade estou fugindo de tudo isso e justificando numa ideia abstrata, numa fé cega em algo tão fácil de evaporar, depois se tornando em planos esquecíveis. Como o pensamento que te sonda durante todo o ensino médio te fazendo acreditar que o ensino superior vai ser bem melhor, uma vez que estaria focada somente nas coisas que de fato gosta. Ou morre-se de desgosto no caminho ou se vive o suficiente pra saber que tudo isso é uma grande mentira contada por quem foi abraçado pela sorte, beijado pelo destino ou cobrido de privilégios.
Mas talvez - e esse é o pedacinho a que me agarro, o pedacinho da possibilidade, que nos permite e muitas vezes nos obriga a planejar e a sonhar coisas que racionalmente não fazem o menor sentido, mas que emocionalmente são perfeitas - talvez, seja isso. A parte que falta. Tal qual aquele livro d'a parte que falta em mim, na incansável procura de algo que fechasse a solidão própria e que completasse toda a existência de um ser que não sabia para que ou por que existia. Dramaticamente eu me comparo ao círculo daquela história - roda, roda, caí, gira, roda mais um pouco, tenta e tenta e não encontra propósito ou possibilidade nenhuma. Sei que a história tem um final feliz e lembro vagamente de terminar com uma descoberta própria, algo na reflexão moral de ele mesmo ser a parte que faltava em si, mas, se estou sendo sincera, não foi o final esperançoso e moralista que me chamou atenção. Eu nem lembro do final. Mas eu lembro do enredo. E do processo. E da incessante procura por algo que parecia óbvio pra quem olhasse de fora. E na teimosia de tentar achar esse algo.
Quando a Greta representou a própria vontade (parece que não estamos tão sozinhos assim na nossa miséria after all) de largar a cidade pequena, de largar a atitude controladora da mãe e os dramas que pareciam tão frívolos e pequenos para um mundo inteiro que a esperava lá fora, como dizem os jovens do twitter: i felt that. Senti na necessidade de Christine de largar Sacramento, na aversão que ela mostrava ter pela cidade e pelos seus costumes e comportamentos, mas senti mais ainda no exato momento em que ela consegue sair. Sair de Sacramento representava sonhos, e se achar no mundo, e conhecer esse mesmo mundo; estar perto da cultura e de pessoas que não são as suas pessoas mas sim outras pessoas. E mesmo assim, por algum motivo, algo parecia faltar.
Você ficou emotivo na primeira vez que dirigiu pela sua Sacramento? Eu sim. Em meio a tremores de nervosismo por estar dirigindo um carro sozinha pela primeira vez, lá no fundo ainda conseguia se fazer perceptível a minúscula gota de confiança. Porque é um caminho que você conhece. São as ruas do bairro que você estudou. São os prédios que você viu sendo construídos, e derrubados, e construídos de novo, mas agora com uma farmácia no lugar. São as árvores que nunca morreram e as pessoas que naturalmente você não suporta, mas que, olhando de longe, parecem tão inofensivas e frágeis, esperando o momento certo para atravessar a faixa de pedestre.
Talvez não tenha tido outro momento tão significativo quanto esse - quanto minha própria experiência de dirigir pela minha Sacramento e pensar que, meu Deus, mesmo com tanta vontade de sair daqui, é inegável que sentirei falta. O que não diminui minha vontade de ir embora, mas é até surpreendente a realização pessoal de que, de fato, a gente consegue guardar um pedaço que é especial, mesmo em experiências que, de modo geral, não foram.
Como todo filme da Disney/Pixar, Moana tem um significado mais forte pra gente que é (jovem) adulto do que para as próprias crianças, que preferem prestar atenção na mitologia e nos tons saturados das cores em tela quando na verdade a obra toda é uma metáfora pra sociologia, meio ambiente, e as relações humanas dentro de um sistema capitalista. Mesmo sabendo e apreciando isso, pra mim foi sobre ter uma personagem que amava o lugar e mesmo assim queria sair dali. Que fazia seu papel feliz da vida, que tinha tarefas e obrigações e um mérito próprio na realização dessas. Não existia, nesse caso, o drama de querer partir para se livrar de nada, ou para querer se descobrir. Moana já se conhecia, Moana não tinha que fugir pra se tornar alguém, pois ela já era esse alguém. Em meio a cenas visualmente bonitas, poeticamente inspiradoras e músicas queridas, me cativou a ideia que alguém que já pertencia também queria sair.
Então talvez esteja na nossa essência. A gente nunca quer o que tem. E quando a gente consegue o que quer, a gente quer mais, ou a gente quer de maneira diferente. Talvez estejamos condicionados a nunca aceitar o real e sempre aspirar à possibilidades.
Talvez, talvez. Muitos talvezes.
De alguma forma, pode ser que a vida não seja sobre se achar. Pode ser que ela seja sobre todo o processo da procura.
Eu não só tinha uma casa como ainda tenho. Não a possuo, não a detenho - ela continua no mesmo bairro onde me criei, longe demais para que não seja uma ideia interessante dirigir até lá para passar a tarde. Por ironia do destino ou não, minha universidade fica no mesmo bairro, o que me obriga a estar lá pertinho dela todos os dias, de segunda a sábado. Mesmo assim, não paro pra ver ou entrar. É minha casa - minha diferente, reformada e agora-um-restaurante casa, onde sei que o buraco na parede se formou durante minhas tentativas de aprender a andar de bicicleta, onde sempre vai cair manga no quintal e onde o espaço que ficava meu antigo quarto até hoje guarda as marcas do meu nome, profissionalmente escrito na parede por um pintor que já morreu.
Minha casa onde eu pertencia, e de certa forma ainda pertenço. E, mesmo assim, pesquisar apartamentos que tinham piscina me parecia tão mais animador e me oferecia tantas outras oportunidades...
Hoje em dia, continuo no apartamento com piscina. Eu nunca tomo banho nela. Sinto muita falta da minha casa.
Mas não quero voltar. Que minha casa descanse em paz, que minhas memórias nela (e dela) continuem vivas. A parte da minha vida que ela representa foi uma ótima parte, mas sair dela me deu uma nova. E o que é nossa vida além de diversas partes, desorganizadas em vários capítulos, esperando para serem finalizados e, por fim, dar espaço a um novo? O que é nossa experiência na terra se não uma incansável busca por algo que nem nós mesmos sabendo o que é, com um desejo gigante de descobrir o que seria o mais longe possível - bem longe do ambiente do capítulo anterior, só por precaução, só pra garantir que o capítulo novo seja exatamente isso: novo.
Na semana antes de viajar pra São Paulo, comentei com algumas pessoas o quão mal estava me sentindo de sair de casa. O vazio de saber que não teria meu ambiente, minha família, meu já decorado conforto. De sentir falta de onde você pertence mesmo. Lembro que alguém virou pra mim e me respondeu "isso significa que você vem de um lugar feliz".
Talvez - só talvez - seja sobre se dar conta disso.