Van Gogh, Andrade, e as amizades que (não) deram certo
Não lembro de muita coisa do meu último ano na escola. Durante uma conversa com meu primo - que no momento é aluno desse mesmo último ano, da mesma escola -, estávamos comentando sobre professor x, y e z, e eu não lembrava sequer quem era o professor z, até que meu primo falou "aquele de História II". Me toquei na hora que não lembrava do professor de História II. Porque eu tinha faltado todas as aulas de História II.
Enfim.
Lembro pouco. Foi um ano difícil, parte que felizmente também não lembro muito, já que, por incrível que pareça, tento bloquear momentos e sentimentos ruins demais que já não fazem parte do meu presente. No entanto, não dá pra esquecer as aulas de Arte. Na sala 1, uma das maiores da minha escola, estudei sobre Van Gogh, suas técnicas de pintura, seu relacionamento com o Gauguin e o famigerado corte da orelha que pra muitos foi consequência disso. Na sala 12, pequena demais em comparação à anterior, a qual fomos transferidos quando metade da turma saiu no meio do ano pra entrar na faculdade particular, aprendi sobre a Semana de 22 e os homens responsáveis pelo planejamento da mesma, Oswald e Mário de Andrade, que não, não eram irmãos, como minha professora fez questão de reiterar.
Vou confessar que meu interesse pelas aulas de Artes naquela época não era estudar o significado daquela cor naquele quadro, ou quantas fases o Picasso teve dentro da produção dele, ou os motivos de Bauhaus ter sido uma escola top demais. Hoje em dia respeito completamente os detalhes de cada vanguarda e me chamar pra debater as diferenças do Impressionismo pro Pós-Impressionismo ou a fase azul do Picasso é me fazer extremamente feliz. Mas naquela época, com a perda de quase todos os meus amigos e a falta de histórias próprias pra contar, eu tava interessada mesmo era na fofoca. Na versão Gossip Girl da arte, nas picuinhas e nos rumores. Fui fanática (e ainda sou, sinceramente - a gente muda bastante mas existem coisas que são a gente) em pesquisar fatos que ninguém ligava sobre a vida desses artistas e tentar encaixar com a obra depois. Hoje, ao esbarrar com um quote do Van Gogh dizendo "o que minha arte é, eu sou também", vejo que foi uma maneira até interessante de observar.
Sou muito adepta da ideia de que você produz o que você vive. Eu gostava de observar e entender o que se passava na vida dos artistas pra depois tentar entender o que eles mostravam pela arte. Sei que deve existir não só uma mas várias correntes filosóficas pra derrubar meu pensamento, aquelas que diziam que não precisava vivenciar a coisa pra ter o conhecimento sobre ela, e que eu nunca vou lembrar o nome. De qualquer forma, aquela que me contava uma história real e me deixava mais próxima da pessoa por conhecer um pouco da trajetória dela pela arte sempre me agradou mais.
Van Gogh era um homem selvagem. Não vou entrar no mérito de discutir sobre seus transtornos porque não sou competente para tal, mas eles devem ser levados em consideração, com toda certeza. Não que os transtornos do Van Gogh tenham ditado a pessoa que ele se tornou, mas é, sim, extremamente relevante pra estudar o perfil dele como pessoa. Van Gogh seria aquele homem frenético demais, frustrado em quase todas as áreas da vida, que sentia demais, DEMAIS, DEMAIS e não sabia onde colocar tanto sentir. Pessoalmente, acredito que ele sabia sim, uma vez que criou um acervo gigantesco e inversamente proporcional ao seu tempo de vida. Imagino que ele tenha sido um homem de sentir > produzir > sentir > produzir em loop, e que não necessariamente isso tenha diminuído a intensidade com que ele absorvia e extravasava sentimentos.
Gauguin era exatamente o oposto, e eu juro que isso não é uma tentativa de fazer uma versão daquele artigo sobre Moro e Lula que colocava todos os pontos contrários da personalidade dos dois. Não que Gauguin não sentisse, pelo contrário: acho que é pre-requisito que você sinta de maneira bem pura pra que consiga produzir arte visual. O ponto é que ele era bem racional, as coisas tinham de ser metodicamente arrumadas pra que ele conseguisse realizar o que tinha planejado, precisava de silêncio pra se sentir confortável e não sabia receber críticas - principalmente as de Van Gogh, uma vez que as técnicas eram completamente opostas e bem, aos olhos de Gauguin, não é como se Van Gogh estivesse em posição de dar dicas sobre produção, quando nem os próprios quadros ele conseguia vender.
Não tem personalidade certa ou errada. Só dois homens, completamente diferentes, achando o único ponto em comum na arte, um deles necessitado de atenção e validação e o outro só pedindo um pouco de paz, obrigado. Nas duas cadeiras que Van Gogh pintou, a primeira representando ele mesmo (simples, só com seu fumo em cima, mostrando que ele não precisava de muito) e a segunda representando seu amigo (a cadeira e o ambiente mais sofisticados, o que Van Gogh afirmou depois ser uma tentativa de representar um comportamento vazio e ausente) fica clara a distinção que ele mesmo via dentro do próprio relacionamento.
Sempre fui muito ciente do nosso dever como ser humano de lidar com diferentes personalidades - não que você precise gostar de todas, mas aceitar que nem todo mundo tem que funcionar do jeito que você funciona. E quando aquele momento mágico de opostos-se-atraem acontece é muito fácil se esquecer disso. Receber alguém comportamentalmente diferente na sua vida não oferece imunidade do tipo "consegui aceitar as divergências, agora só é paz". Pessoas entram e permanecem na nossa vida por incontáveis motivos, mas ainda são diferentes. Não tem certo ou errado, ao mesmo tempo que o "não-vai-dar-certo" não é um ultimato, mas tem variedade. É uma pessoa no preto tentando lidar com uma pessoa no branco, ao mesmo tempo que ninguém é preto no preto ou branco no branco, porque é impossível viver sem a fluidez e complexidade que literalmente todo mundo tem. Esperar que não apareça um cinza, em 50 tons diferentes, é quase que ingenuidade.
Do nosso lado do globo, o que aprendi da sala 12 me deu uma certeza: Mário e Oswald de Andrade foram duas pessoas destinadas a ser. Muito foi falado da amizade que os dois tiveram, de tudo que eles fizeram juntos, tanto na vida pessoal como profissional, e de como eles se completavam de tal forma que chegava a ser bizarro. Lembro de ouvir que os dois eram tão diferentes mas tão em sincronia que parecia que um era o que faltava no outro. Oswald era o extrovertido em todos os sentidos da palavra, chegava pra ser ouvido e todos tinham que notar a presença dele porque se não fosse pra causar nem saia de casa, né meninas? (ANDRADE, Oswald. 1922). Era intenso de modo que extravasava e inundava todos ao redor dele. Mário era quieto, o amigo que colocava a mão no ombro do Oswald quando ele tava sendo !!!!!EXTRA!!!!! demais, e que pedia desculpas pra todo mundo da mesa quando o outro fazia uma piada meio duvidosa, rindo tanto que nem notava que talvez tivesse falado bosta. Mário era intenso de modo que guardava, mas ainda assim também inundava todos ao redor dele. Parecia a match made in heaven porque um literalmente ajudava e oferecia ao outro aquilo que faltava, ao mesmo tempo que amenizava o que tinha em demasia.
De novo: diferenças. Divergir não parecia ser um problema no caso dos Andrade, até que uma piada saiu errada demais, ou um comentário foi feito sem que fossem analisadas as consequências (e, sinceramente, não sou fã do cara, mas prefiro dar o privilégio da dúvida pro meu próprio bem) e dessa vez não teve sorriso amarelo que conseguisse se desculpar pelo outro. O fato é que Mário e Oswald romperam, em algum momento dos vários anos que ficaram juntos, e em contraste ao parágrafo anterior, que me fez acreditar que ambos foram destinados a ser amigos, pouco se fala sobre o ponto final na amizade deles.
Hoje, em 2017, é comemorado o centenário da amizade de Oswald e Mário. Amizade essa que não existe faz tempo, mas, nas palavras do organizador da exposição que tá rolando em homenagem ao relacionamento dos dois: "O mais bonito pra mim é a história dessa amizade que acaba. Todo mundo tem algo assim."
Acredite ou não, meu objetivo com tudo isso, 1511 palavras depois, era refletir sobre amizades, e pessoas diferentes demais para continuarem na ilusão de amizade eterna, e em como a gente projeta nossas próprias vontades e sentimentos no outro, em como pessoas tão diferentes da gente podem marcar nossa vida pra sempre e em como tudo é finito, até o que, se dependesse de nós, não seria. Tô muito ciente dos meus relacionamentos ultimamente. Não consigo ignorar que tudo muda, porque os anos passam mesmo e, surpresa: eles não param de passar. É uma linha muito tênue entre refletir sobre isso e achar que você nunca conheceu as pessoas que você admirava tanto antes, simplesmente porque as diferenças entre vocês ficaram invisíveis no meio de tanto carinho. Uma hora vem à tona, e não dá pra colocar alguém na parede por ter uma súbita visão da realidade de "ah-então-é-essa-pessoa-que-você-é", porque você já sabia. Você já sabia e aceitou isso, soube inclusive lidar durante muito tempo, e foi feliz vivendo com o que hoje já não te faz mais sentido.
Acho que é esse momento do "sabia das divergências, dos riscos, e foi feliz mesmo assim" que dá um sabor agridoce quando você para pra pensar em todos os momentos. Não é porque algo é finito que não te trouxe felicidade ou que não tenha feito sentido. As coisas são boas, talvez depois não sejam mais, e elas acabam e tá tudo bem. Talvez elas sejam boas por serem finitas. Talvez elas pudessem ter durado um pouco mais, ou pra sempre. Talvez. Mas o talvez nunca vai tirar o mérito e a importância do que foi vivido e que fez sentido naquele momento, porque isso é certeza.
É aquela cena de One Day, que leva um dos quotes que mais me tocam na vida, quando a Emma não tá compreendendo mais quem o Dexter é, ou quem ele se tornou, e nada faz sentido. Tá tudo muito confuso sobre ele no momento, mas isso não apaga o Dexter que ela conheceu, e que amou durante todo esse tempo, ou a história que eles tem juntos. Pessoas rompem, se separam e constroem numa distância absurda o tempo todo porque deixou de fazer sentido, mas o amor que você tem por elas é maior que isso.
É complexo - mas a gente é uma construção infinita de detalhes que, por sorte, não foram feitos pra serem simples.
Gauguin ainda falou com Van Gogh depois do episódio da orelha, muito embora os dois nunca mais tenham se visto. Ele também pediu uma versão dos famosos girassóis, tela que Van Gogh pintou não só uma vez, mas 6, tendo inicialmente planejado 12, para decorar o quarto do amigo na casa que moravam juntos. Anos depois, Gauguin comprou sementes de girassóis para plantar onde morava, e 2 anos antes de morrer pintou as mesmas flores que o amigo um dia tinha lhe oferecido. Mário e Oswald nunca mais colaboraram, nunca mais tiveram o prazer de pegar o carro do Oswald e andar pela cidade de São Paulo fazendo baderna com seus outros 3 amigos que formavam o Grupo dos Cinco. Mas ficaram as dedicações nos livros, os projetos de arte moderna que são estudados até hoje e exposições de 2017 para homenagear os dois. Pessoalmente, acho que o apreço mútuo e o gostinho agridoce ao relembrar de tudo também nunca foram embora.
Tá tudo bem ter relacionamentos que deixam de fazer sentido ou que não se sabe mais como lidar. As memórias ficam. E até tem como fugir de alguém, mas das memórias e momentos que ela te trouxe... Não tem finitude que apague.