Archive for 2019

une eau s'il vous plaît



*Os nomes citados nesse texto foram modificados para a preservação de identidade dos personagens, não pela possibilidade que isso sequer caia em suas mãos, mas sim pela grande paranoia de não querer responder um processo por danos morais. 

Rodrigo* sempre foi a áurea mais brilhante do ambiente de trabalho. Chegava depois de todo mundo, com pasta na mão e copo vazio pronto pra ser enchido com café quente e doce toda manhã - mas sua chegava já trazia a certeza de que ganharias um beijo na testa e um abraço. Caso não tenhas costume de trabalhar num escritório, te confirmo que nada é tão The Office. Poucas vezes existe algo além do bom dia e uma pergunta solta, às 10:30 da manhã, pra saber se o arquivo da semana passava já foi assinado. Mesmo assim, Rodrigo parecia fazer diferente. 

Ontem sentei com Rodrigo - não pela primeira vez, mas pela primeira vez que realmente importou. Reclamamos do chefe, seu Leonidas, e sua insuportável mania de cobrar demais e fazer de menos. Discutimos sobre doença mental, sobre medicação psiquiátrica, sobre nossos pais que não falam mais com a gente, sobre passar o dia dos pais sem pai. Sobre depender da mãe (pra mim, aos 21, algo natural - pra ele, já com cabelos grisalhos, algo mais vergonhoso). Rodrigo conta sobre estar noivo, sem um centavo no bolso, e sobre a conversa que teve com sua noiva dias atrás. "Minha vida é assim. Ela é disfuncional. Se isso é demais pra você, sugiro e aconselho que você termine comigo, passe 3 meses sofrendo muito, e no quarto encontre alguém numa situação melhor que vai lhe fazer feliz pro resto da vida". Ela não quis. Disse que só seria feliz com ele. Ele disse que não era verdade, mas não foi contra a escolha dela - também não queria se separar. Me confidenciou que, em todos os tópicos de sua própria vida, o relacionamento era o único que ia bem.

Disse isso pra mim, que havia passado a noite anterior inteira chorando por um antigo relacionamento que já não ia mais para lugar nenhum. Não consegui dizer isso pra ele. Não consegui confidenciar de volta que, enquanto ele contava a própria história, eu estava de olhos marejados por ele mas também por mim. 

Rodrigo perguntou se eu manjava de matemática. Disse que não. "Ótimo", ele respondeu. Pegou um pedaço pequeno de papel branco, rascunho, cuja parte de trás estava coberta de restos de processos trabalhistas já perdidos no tempo. Rodrigo fez um gráfico representando uma função negativa: a linha descia, descia, descia, mas, pelo pouco que aprendi de matemática (com ele, ali mesmo), descobri que nunca parava no zero. "Nunca vai dar zero. 1/0 não existe." Rodrigo disse que via aquela função como uma representação de tudo que a gente faz na vida. As coisas mais importantes e mais valiosas demoravam mais pra entrar em declínio - mas eventualmente entrariam, porque não é uma constante. Nada é uma constante pra sempre. Ele me deu um tapa no braço, sem avisar, e perguntou se doeu. Falei que não. Ele respondeu: "é porque não teve importância. O valor desse tapa foi menor, então, no teu gráfico, o tempo de vida dele, o quanto ele te afeta, já passou. É insignificante. Mas às vezes o tempo de vida útil do tapa pode levar meses, anos, pra desaparecer." 

Me disse que, obviamente, a perda de um ente querido demoraria bem mais pra estabilizar no gráfico da função negativa do que uma caneca quebrada. (Perdi minha tia menos de um mês atrás. Não sei se ele sabe, não sei se foi uma referência.) Minha vida não pareceria estar acabando porque quebrei uma das minhas canecas favoritas - mas talvez perder alguém parecesse que sim. Até não parecer mais. "A gente aprende a modificar o gráfico do jeito que a gente quer." 

Hoje sentei com Rodrigo de novo, e ele leu pra mim um parágrafo inteiro de O Fantasma da Ópera, versão original, em francês. Me ensinou a pronúncia de cada uma dessas palavras, me mostrou que o som do é é fechado e do ê é aberto, ao contrário da língua portuguesa. Falou "Christine Daaé" (Daaiê) em um sotaque francês perfeito. Falei que não fazia ideia de como reproduzir aqueles sons, e ele me disse que "se tu achar que não consegue, não vai conseguir mesmo". 

"E se eu tiver lá e quiser pedir uma água?"
"Une eau s'il vous plaît."

Aproveitando o momento, Rodrigo me disse que fazia parte de um grupo chamado "Colecionadores de Coisas Iguais". Descobri que colecionamos as mesmas coisas iguais: DVDs de Fantasma da Ópera versão filme, versão no palco, versão terror dos anos 50, o livro da história original, cover da música tema feita pela banda Nightwish. 

Perguntei o que ele achava da história. "Por exemplo," eu disse, "vi o filme pela primeira vez quando era criança e fiquei triste. Triste porque o fantasma continuou sofrendo, triste porque ele abriu mão da única pessoa que amava mesmo que significasse que ele continuaria sem amor, como sempre foi. Hoje em dia, vejo a história de novo e já acho completamente doentio. Ele é doente."

Rodrigo me respondeu que o fantasma, Erik, amou Christine da foma como ele conhecia ou entendia o amor: distorcido, exclusivo, obsessivo, egoísta. Achava que deveria ser um sentimento dele, e só pra ele, e que Christine só poderia viver em paz se significasse estar com ele - porque ele não estaria em paz sem ela. Nas cenas finais (alerta de spoiler), ele teve a única atitude de amor, o amor como ele é de verdade mesmo, para com Christine: deixou que ela fosse, mesmo que isso significasse sua própria solidão. Porque a felicidade e o bem-estar dela era mais importante que qualquer sentimento dele.

"Ele finalmente conseguiu ver que amor não era ter tudo dela pra si, mas deixar que ela fosse livre pra finalmente ser feliz."

Lembrei da noiva de Rodrigo. Lembrei que ele, sem sucesso, tentou deixá-la ir ao pensar que, longe dele, ela estaria melhor e eventualmente mais feliz. Lembrei de mim, e do que já deixei e ainda estou deixando ir, mesmo doendo, porque amo alguém ao ponto de colocar as vontades e necessidades dela acima das minhas próprias. 

Não sei se Rodrigo sabe o impacto que nossas últimas conversas me causou. Talvez não, porque eu não cheguei a mencionar, e já vivi o suficiente pra compreender que as pessoas não tem como adivinhar o que você não fala. Mas acho que ele tem uma ideia. Fui abraçada, ganhei um beijinho em demonstração de afeto, e ouvi depois que eu tenho um amigo. E que podemos estar em barquinhos parecidos, mas se eu quiser despejar um pouco da minha água pra tentar não me afogar, eu posso jogar - pois não vai prejudicar o barquinho dele. 


Queria dizer pra ele que entendo completamente o ponto de tudo isso, e a lição de moral foi entregue com sucesso - mas não significa que a dor de deixar ir seja menos pior. Honestamente, as últimas semanas, dias, e até meses, vêm sendo curvas altíssimas no meu gráfico, e provavelmente demorarão anos pra estabilizar. Nunca vai ser zero. O que não quer dizer que sempre ficarão no topo. Um dia, um belo dia, a curva vai descer, e a gente vai conseguir respirar de novo, e a dor da lembrança vai ter a mesma intensidade do tapa no ombro que Rodrigo me deu e não doeu. 

Perdi muitas coisas, deixei outras irem, mas seja lá o que aconteça no final desse período de desintoxicação emocional pelo qual estou passando, sigo feliz sabendo que sempre terá um Rodrigo. Uma Giovanna. Uma Vitória. Uma Gabriela. Uma Mariana. Um João. Uma Julia. Uma Isabelle e uma Nathalia. Sempre vai ter alguém. E mais alguém.





Este post de forma alguma apoia relacionamentos abusivos em que um Phantom justifica suas atitudes falando que "nunca conheceu amor pra saber como reproduzir de maneira correta". Se ele tenta matar seu namorado ou te mantem em cárcere privado, por favor denuncie. 

Relatos do meu Gênesis

Frequento a igreja evangélica desde que me entendo por gente. Não foi necessariamente desde que nasci - minha mãe se converteu (ou: "migrou do catolicismo pro protestantismo", pra quem não entende o dialeto chaotic good dos termos da igreja) quando eu era criança, pequena demais pra lembrar exatamente como ou quando foi. Meu pai continuou sendo servo de deus nenhum, numa religião onde a única igreja dele aos domingos é a cerveja enquanto assiste futebol - e isso, sem surpreender a ninguém, resultou na óbvia e esperada separação dos dois. 

Sempre que eu perguntava a alguém por que os meus pais haviam se separado, a resposta era a mesma: "sua mãe é crente, seu pai não é". Eu não entendia muito bem o que isso queria dizer, mas já tinha aprendido desde cedo a não perguntar demais quando o assunto era religião. Meus questionamentos oscilavam entre irritar e intrigar as pessoas a quem eu os direcionava, querendo saber pra quem exatamente a gente orava ("é pra Deus, pra Jesus ou pro Espírito Santo? Qual deles tá me ouvindo?") ou "se Deus sabe de tudo, por que ele criou a terra e colocou a maçã no jardim se ele já sabia que Adão ia comer?". Até hoje não sei a resposta concreta dessas perguntas. "Não tem explicação pros mistérios de Deus, Denise", todos eles respondiam. Pra uma criança curiosa, era uma resposta horrorosa.

Sempre gosto de relatar minha primeira experiência com a ansiedade, no auge dos meus pouquíssimos cinco, seis anos de idade, quando comecei a entrar em pânico pensando que, quando eu morresse, eu provavelmente iria pro inferno, porque eu não era uma criança boa (nota da autora: a auto-sabotagem e auto-depreciação chegaram cedo pra essa que vos fala). Era um desespero assustador toda vez que eu soltava uma mentirinha dizendo que não, não fui eu que comi o biscoito guardado no armário - e, do nada, BOOM, meu nome já marcado no livro do inferno. Demorei anos, e anos, e anos, tentando me desvencilhar dessa agonia de achar que eu não podia errar de forma alguma porque, em algum momento no fim dos tempos, da maneira sobrenatural mais produção baixo orçamento da CW possível, eu iria pagar com minha alma.

É verdade quando falam que o que já tá ruim tende a piorar - porque daí foi só ladeira abaixo. Pra alguém que cresceu dento da igreja evangélica, com pastores que tanto pregaram a liberdade e alegria infinita dos chamados filhos de Deus, eu, por muito tempo, só sentia uma coisa: medo. Eu tinha medo do barulho que o pessoal fazia na Igreja. Medo de quem pulava, gritava, desmaiava estirado no chão (eles chamavam de arrebatamento, eu chamava de "meu Deus do céu alguém liga pro médico que a mulher morreu"). Medo de quando eles falavam "deixa o Senhor falar com você", e eu pedia, em silêncio, sozinha em casa, pra que Deus não falasse comigo porque eu iria chorar com uma voz do além querendo se comunicar de noite. São incontáveis as vezes que eu chorei e tive ataque de ansiedade quando minha mãe não atendia o telefone, porque eu achei que Jesus tinha voltado, levado a igreja (nunca houve dúvida nenhuma na minha cabeça que minha mãe seria uma das pessoas salvas) e eu tinha ficado. O famigerado filme Ultimato me trouxe war flashbacks dessa época, quando minha vida e saúde mental eram a imagem perfeita da galera que ficou na terra com traumas psicológicos. Deus era o Thanos e o arrebatamento era o estalo. Os que viraram pó eram os arrebatados. Na primeira sessão que assisti, lembro de virar pra alguém e comentar "nossa, muito apocalíptico esse filme né kkkkk....". O kkkk... eram risos nervosos.

Cresci sentindo tanto medo da experiência espiritual e de um Deus supremo que até esqueci de sentir medo do diabo e seus afins. 

Depois de crescer o suficiente pra entender que ninguém poderia me explicar o que não entendia, meu medo já não era mais o sobrenatural ou o inexplicável. Meu medo eram as próprias pessoas, a aversão aos meus princípios, a crueldade em palavras com quem tanto diziam amar, a pregação baseada em se colocar como superior e condenar todo mundo que parece ser diferente. Hoje, parando pra pensar, não foi meu medo atrelado ao desenvolvimento da minha precoce ansiedade que me tirou da igreja - foi o próprio comportamento humano. Mas, por mais que eu sempre seja a primeira na fila pra criticar a hipocrisia e a falta de caráter do cristão que se escora no cristianismo, hoje não é sobre isso. 

Assistindo Good Omens (ironicamente num domingo, o dia de Deus), ri com uma satisfação absurda ao perceber que eu sou, de fato, o anjo da história. Sem grandes spoilers, posso te dizer que o Aziraphale tá tão preocupado em fazer o certo, em obedecer os ordenamentos divinos, e com tanto medo de errar nisso, que ele é uma grande bolha de ansiedade, implorando em voz baixa "por favor, não briguem, a gente pode resolver isso na conversa - pra que um anti-cristo?". Eu fui (e sou?) essa persona. Cresci condicionada a agir e pensar com pureza, a representar poder divino, a buscar pela minha salvação e negar o que tentaria me desviar desse caminho - mas às vezes eu só queria comer sushi sem essas preocupações na minha cabeça. 



Hoje em dia, não tenho mais medo. O cristianismo é parte de mim - foi o que eu aprendi, foi com o que eu cresci. Demorou muito pra que fizéssemos as pazes, pra que eu parasse de culpá-lo pelas minhas próprias ansiedades, para que eu parasse de condená-lo pelo discurso humano. Gostando ou não, eu tive de aceitar que sou uma pessoa espiritual, pois toda minha concepção de existência e propósito foi moldado nessa ideia desde que eu aprendi a falar. E, como ser espiritual, eu preciso acreditar em algo. Eu preciso me confiar que alguém, alguma coisa, num plano superior, tá com tudo anotado num bloquinho. É exaustivo ser, sozinha, a pessoa que tenta organizar o bloquinho sozinha.

Numa reviravolta satisfatória dos fatos, como o bom Aziraphale que sou, encontrei um lugar que posso exercer minha espiritualidade sendo eu mesma, de um modo que foge do tradicional maçante e da hipocrisia que tanto condeno. Hoje em dia, pra mim, é mais real. É mais humano. É mais sobre o aqui e agora, tentando fazer o que a gente pode pra ter uma essência boa. É raro que eu esbarre hoje com a manifestação sobrenatural do divino, aquelas que envolvem rodopios e línguas estranhas. Longe de mim falar que existe um modo certo e um modo errado - o que existe é algo que funciona melhor pra mim, que me faz bem. E o que me faz bem, hoje, é poder me ver feliz vendo outras pessoas felizes, buscando uma energia que simplesmente não é daqui. 

É um processo lento que ainda tenho que me esforçar pra acostumar. Minhas incontáveis (i n c o n t á v e i s!) críticas ao papel do cristianismo hoje e à igreja como instituição às vezes falam bem mais alto do que minha vontade de fazer parte disso tudo. Mas as coisas acontecem de formas doidas.  

Em algum momento da semana passava eu tive outra crise de ansiedade. Meu quadro já tá estável faz tempo, graças à intervenção da psiquiatria (adendo: Deus não é psiquiatra nem terapeuta, procurem profissionais), o que significa que qualquer pequena crise é fácil de ser lembrada - porque ela é rara e única. Nessa em específico, lembro de já estar deitada quando uma nuvem negra de pavor se dissipou em cima de mim, e eu só conseguia pensar que um dia eu iria morrer, e nada disso faria sentido algum, e que todo mundo ia deixar de existir, e eu iria deixar de existir e, meu Deus, depois o que acontece?céu ou inferno e qualquer um a gente vai viver pra semore?praSEMPRE ETERNIDADE?nao cosnigo respirar? 

fim.

Foi assim até eu conseguir normalizar minha respiração. Ao relatar isso pra minha mãe no outro dia, a resposta dela eu já sabia: "você tem que entregar essas ansiedades pra Deus". Não sei se entreguei (respondi "aff mãe" e fiquei quieta), mas alguém pegou. Hoje fui à igreja, uma que não tem absolutamente nenhuma semelhança às nuances relatadas na igreja que eu cresci, e imaginem minha surpresa ao abrir a bíblia e encontrar um texto que dizia mais ou menos assim (tradução minha, pois minha bíblia é em inglês - mas aí é outra história):
 
24 Vou lhes dizer a verdade: se um grão de trigo não cair no chão e não morrer, ele vai continuar sendo só um grão de trigo. Mas, se ele morrer, dará muito mais trigo. 25 Quem ama demais a própria vida vai perdê-la, enquanto o homem que odeia sua vida nesse mundo vai continuar com ela pro resto da vida. 

Talvez não signifique nada pra ninguém - talvez as outras pessoas na igreja hoje nem tenha absorvido esse pedaço do texto do mesmo jeito que eu absorvi. Mas a gente é subjetivo mesmo, então isso não me assusta. Na minha cabeça isso funcionou como uma resposta de que eu não sei de nada com nada, e que, se existe morte, é pra existir vida. Religião não é terapia, mas pode ser terapêutico. 

Como o belo emaranhado de energia espiritual que sou, já me acostumei com a ideia de que eu sou quem sou - e o que eu acredito (e não acredito) também é parte disso. Uma das coisas mais bonitas do cristianismo, pra mim, sempre foi Cristo em si. Tenho pra mim que Jesus, o maior socialista e precursor dos Direitos Humanos de seu tempo, ficaria feliz com a imagem que tenho dele hoje.
 




(P.S.: não sofram tanto de culpa, crianças. Ninguém é 100% bom. Até o Aziraphale, que é um anjo, tem um melhor amigo que é um demônio. Nós, seres humanos, geralmente somos metade/metade de cada um.)

 



ainda completamente contra a bancada evangélica
- D.

bitch i'm back by popular demand

tive uma época que caso vazasse meu histórico do youtube, ele seria só uma lista infinita de todos os lives de crazy in love da beyoncé disponíveis na plataforma, ao ponto que hoje, ouvindo o live do i am... world tour, sei exatamente os passos e momentos da coreografia. depois o fenômeno absurdo que foi single ladies (o marco pra mim da mudança "cantora pop americana comum" pra "Ícone Artístico" - lembrando que sou de uma leva mais nova dessa geração e nem peguei a febre sandy & jr porque era criancinha demais), a figura Beyoncé (com B maiúsculo mesmo, representando santidade) se tornou uma figura canonizada mesmo, alguém que basicamente não existia além da personalidade artística, alguém que era tão intocável que a gente não sabia exatamente quem ela era além da artista que, inevitavelmente, todo mundo conhecia. 

era estranho pra mim que uma das mulheres mais conhecidas e populares do mundo tivesse sido construída quase que com o objetivo de ser inalcançável, moldada numa perspectiva completamente distante da realidade. me pergunto quanto disso foi escolha dela, quanto disso foi resultado da mídia e quanto foi construção alheia em cima de alguém que é simplesmente isso - alguém. é uma enredo conhecido demais, esse de artistas/performers se distanciando da figura real pra deixar à amostra só a personalidade construída especificamente pro entretenimento. a lady gaga fez no começo da carreira, quando todo mundo sabia quem era a doida que usava vestido de carne crua e passava dias presa dentro de um ovo, sendo carregada dentro dele em eventos; a taylor swift faz agora, depois que abraçou a narrativa que tanto a chamou de cobra, falsa e egocêntrica, quase que dizendo um "não me chamaram tanto disso? agora me vejam ser" no último álbum, depois de se retirar quase que completamente do ambiente midiático (são raras ou quase escassas as entrevistas que ela deu ou pronunciamentos pessoais que fez nesse período). 

entre elas e muitas outras, no entanto, a beyoncé me parecia a menos humana. não de um jeito ruim, nunca senti que faltasse autenticidade ou conexão pessoal no trabalho dela, pelo contrário. eu só achava que ela era perfeita demais pra existir no mundo real, no nosso mundo - assim como um dia já achei que a lady gaga era excêntrica demais pra ser um ser humano comum. o que documentários como homecoming e five foot two me trouxeram foi a afirmação do óbvio: elas eram, sim, reais. mostrar isso só ficava mais difícil quando todo um público global esperava de você certo comportamento, ou certa perfeição que, na prática, elas suavam e choravam e sentiam dor e iam a extremos inimagináveis pra conseguir atingir. 


vendo as performances do beychella, meu cérebro explodia pensando em como uma mulher de carne e osso como eu tinha a capacidade de mover o corpo daquele jeito, ao mesmo tempo que alcançava todas as notas e mantinha uma atitude no palco que era quase obviamente superior à todos os outros seres viventes - isso sem falar, é claro, de lembrar todas as letras, acertar as marcas no palco pra filmagem ficar certa, interagir com o público e com os dançarinos. vendo o produto final, é muito fácil a gente se deixar levar pra uma fantasia irreal de que aquilo é um nível de perfeição que só Ela tem, e só Ela, a Intocável e Inalcançável, faz. e talvez seja só ela que faça mesmo, na nossa indústria atual, mas ela não faz por ser absolutamente perfeita ou ter super poderes. é brabo engolir a ficha de que a beyoncé não é uma super humana.

não que eu merecesse que a bey me provasse alguma coisa, mas os bastidores de homecoming me provaram, sim, que ela é gente. acredite ou não, ela não nasceu sabendo a rotina de formation e, chocante!, durante os ensaios ela reclamava dos passos complicados, olhava pro dançarino do lado quando esquecia algo, fazia cara feia pro que ela não conseguia fazer e, apesar de tudo, tentava de novo. encontrei também a beyoncé sorridente dos dentes curtinhos, que se faz presente quando conversa com outra pessoa, que faz oração sincera oferecendo toda honra e glória à Deus, que fica feliz demais ao conseguir vestir um figurino antigo ao ponto de ligar pro marido só pra mostrar e depois fazer piada porque "homens não se animam com essas coisas". parecia haver um universo de diferença entre a beyoncé que quebra janelas de carros com um bastão de baiseball e a beyoncé que, de maneira tão vulnerável, compartilha ter chegado aos 99 quilos numa gravidez extremamente de risco que mudou toda a conexão dela com o próprio corpo. 

não é que eu não tenha visto essa beyoncé antes (eu já vi outros documentários e outras raras entrevistas em que ela fala de um ponto de vista pessoal e não o roteiro decorado que o PR oferece pra todos os artistas) - é que eu sentia falta dela. e era muito fácil esquecer que ela existia quando a figura com que eu tinha me acostumado era a personalidade dos palcos, a mulher que responde "obrigada" quando falam "você é a Beyoncé". quase como se a Beyoncé fosse a figura que ela passou anos construindo, e a verdadeira beyoncé estivesse agradecendo por ser vista nEla. 


 

o engraçado disso tudo, dessa personalidade criada pro nosso entretenimento, que a mídia gosta tanto de alimentar (e, sejamos honestos, nós também) é que ela não tem um padrão pra todo mundo. enquanto a beyoncé foi se aproximando cada vez mais desse recurso - ao mesmo tempo que quanto maior o nome dela ficava mais ela se distanciava da visão de ser humano real, a lady gaga por exemplo pegou o caminho inverso e resolveu se distanciar de toda a armadura performática que ela criou por anos, escolhendo um representação mais crua e real dela mesma (vide: joanne, a star is born, o já citado 5 foot 2). no final das contas, é só mais uma forma de expressão e como essas artistas escolhem usá-la. o ponto interessante nem é toda essa questão, muito embora ela seja, sim, interessante demais. o ponto interessante é como a gente é completamente viciado nesse material, e quanto mais enigmático mais sedento a gente fica.

dia desses vi um vídeo da billie eilish (uma dessas personalidades que no momento tá no auge da sua popularidade) em que ela refez a mesma entrevista com 1 ano de diferença, e o vídeo era editado pra mostrar exatamente as diferenças entre esses dois momentos. não era preciso ler os comentários do vídeo pra deduzir sozinha que a mudança nela nesse intervalo de 1 ano era visível: ela já não tinha a mesma inocência, ou a mesma pureza real de uma menina de 16 anos que escolheu compartilhar a própria arte. ela aparentava estar mais cansada, não sorria mais com a mesma facilidade de um ano atrás, e se mostrava claramente emocionada ao se comparar com as filmagens antigas, ao ponto de chegar a perguntar "eu falei mesmo isso? se você ao menos soubesse..."

não tenho propriedade nenhuma pra falar sobre a indústria, ou sobre o que ela pode e faz com pessoas reais - mas, numa visão geral, se ela não fosse completamente controladora, ela não seria tão lucrativa. a própria billie eilish já disse, e eu quoto, que "artistas são os seres mais tristes do mundo". é quase insensível que a gente se divirta tanto em cima disso, e mesmo que inconscientemente trate seres humanos como máquinas que só existem pra nos entreter.

a cultura pop sempre me fascinou porque amo ver pessoas indo além de seus extremos pra fazerem o que mais ninguém está fazendo - e amarem isso. sempre gostei porque era bonito e inspirador demais ver o processo de produção, por exemplo, do homecoming, e ouvir a beyoncé dizendo que deixou a coroa de flores de lado pra colocar cultura negra naquele palco, e todo o cuidado e estudo que ela teve pra executar isso. sempre gostei porque beirava ao absurdo ver a lady gaga fazendo performances com o quadril já quebrado e gritando de dor durante a música, sem falar pra ninguém, porque ela simplesmente se obrigava a terminar a turnê. ainda é intrigante pra mim ver gente que ama tanto exercer a própria arte que se entrega físico e mentalmente pra isso. 

como mencionei antes, não sei até que ponto a culpa é completamente nossa ou da cultura que nos obrigaram a ter - por que, em pleno 2019, como ousas não se divertir ou se importar com o celebridades classe A? como ASSIM você não sabe quem é a kim kardashian? é um comportamento que adoece pessoas reais, a quem a gente passa toda uma vida projetando uma perfeição e heroísmo que não existe. chega a ser uma parada meio epicurista - um tipo de prazer não necessário que a gente gosta de ter mesmo sem precisar, e o tipo de prazer que pra eles vem na forma de fama, prestígio e dinheiro, que no final das contas não leva à liberdade espiritual plena (palavras de epicuro, não minhas - eu queria, sim, dinheiro agora). mas como a gente é humano e humano geralmente é meio otário, toda essa reflexão vai continuar me rondando até eu me ocupar o suficiente pensando em que era a lady gaga vai seguir no novo álbum, ou como a beyoncé parece deus.

no mais, eu já perdi completamente o raciocínio, então meu último objetivo aqui é mandar vocês verem homecoming e absorverem a mensagem feminista e de excelência negra que beyoncé nos deu de graça (ou por 29 reais de assinatura na netflix) em forma de expressão artística. de nada.




*in other news: fiquei tão inspirada que voltei pra cá. esta merda é poderosa.

 



do you slay?
cause i slay.
- d