*Os nomes citados nesse texto foram modificados para a preservação de identidade dos personagens, não pela possibilidade que isso sequer caia em suas mãos, mas sim pela grande paranoia de não querer responder um processo por danos morais.
Rodrigo* sempre foi a áurea mais brilhante do ambiente de trabalho. Chegava depois de todo mundo, com pasta na mão e copo vazio pronto pra ser enchido com café quente e doce toda manhã - mas sua chegava já trazia a certeza de que ganharias um beijo na testa e um abraço. Caso não tenhas costume de trabalhar num escritório, te confirmo que nada é tão The Office. Poucas vezes existe algo além do bom dia e uma pergunta solta, às 10:30 da manhã, pra saber se o arquivo da semana passava já foi assinado. Mesmo assim, Rodrigo parecia fazer diferente.
Ontem sentei com Rodrigo - não pela primeira vez, mas pela primeira vez que realmente importou. Reclamamos do chefe, seu Leonidas, e sua insuportável mania de cobrar demais e fazer de menos. Discutimos sobre doença mental, sobre medicação psiquiátrica, sobre nossos pais que não falam mais com a gente, sobre passar o dia dos pais sem pai. Sobre depender da mãe (pra mim, aos 21, algo natural - pra ele, já com cabelos grisalhos, algo mais vergonhoso). Rodrigo conta sobre estar noivo, sem um centavo no bolso, e sobre a conversa que teve com sua noiva dias atrás. "Minha vida é assim. Ela é disfuncional. Se isso é demais pra você, sugiro e aconselho que você termine comigo, passe 3 meses sofrendo muito, e no quarto encontre alguém numa situação melhor que vai lhe fazer feliz pro resto da vida". Ela não quis. Disse que só seria feliz com ele. Ele disse que não era verdade, mas não foi contra a escolha dela - também não queria se separar. Me confidenciou que, em todos os tópicos de sua própria vida, o relacionamento era o único que ia bem.
Disse isso pra mim, que havia passado a noite anterior inteira chorando por um antigo relacionamento que já não ia mais para lugar nenhum. Não consegui dizer isso pra ele. Não consegui confidenciar de volta que, enquanto ele contava a própria história, eu estava de olhos marejados por ele mas também por mim.
Rodrigo perguntou se eu manjava de matemática. Disse que não. "Ótimo", ele respondeu. Pegou um pedaço pequeno de papel branco, rascunho, cuja parte de trás estava coberta de restos de processos trabalhistas já perdidos no tempo. Rodrigo fez um gráfico representando uma função negativa: a linha descia, descia, descia, mas, pelo pouco que aprendi de matemática (com ele, ali mesmo), descobri que nunca parava no zero. "Nunca vai dar zero. 1/0 não existe." Rodrigo disse que via aquela função como uma representação de tudo que a gente faz na vida. As coisas mais importantes e mais valiosas demoravam mais pra entrar em declínio - mas eventualmente entrariam, porque não é uma constante. Nada é uma constante pra sempre. Ele me deu um tapa no braço, sem avisar, e perguntou se doeu. Falei que não. Ele respondeu: "é porque não teve importância. O valor desse tapa foi menor, então, no teu gráfico, o tempo de vida dele, o quanto ele te afeta, já passou. É insignificante. Mas às vezes o tempo de vida útil do tapa pode levar meses, anos, pra desaparecer."
Me disse que, obviamente, a perda de um ente querido demoraria bem mais pra estabilizar no gráfico da função negativa do que uma caneca quebrada. (Perdi minha tia menos de um mês atrás. Não sei se ele sabe, não sei se foi uma referência.) Minha vida não pareceria estar acabando porque quebrei uma das minhas canecas favoritas - mas talvez perder alguém parecesse que sim. Até não parecer mais. "A gente aprende a modificar o gráfico do jeito que a gente quer."
Hoje sentei com Rodrigo de novo, e ele leu pra mim um parágrafo inteiro de O Fantasma da Ópera, versão original, em francês. Me ensinou a pronúncia de cada uma dessas palavras, me mostrou que o som do é é fechado e do ê é aberto, ao contrário da língua portuguesa. Falou "Christine Daaé" (Daaiê) em um sotaque francês perfeito. Falei que não fazia ideia de como reproduzir aqueles sons, e ele me disse que "se tu achar que não consegue, não vai conseguir mesmo".
"E se eu tiver lá e quiser pedir uma água?"
"Une eau s'il vous plaît."
Aproveitando o momento, Rodrigo me disse que fazia parte de um grupo chamado "Colecionadores de Coisas Iguais". Descobri que colecionamos as mesmas coisas iguais: DVDs de Fantasma da Ópera versão filme, versão no palco, versão terror dos anos 50, o livro da história original, cover da música tema feita pela banda Nightwish.
Perguntei o que ele achava da história. "Por exemplo," eu disse, "vi o filme pela primeira vez quando era criança e fiquei triste. Triste porque o fantasma continuou sofrendo, triste porque ele abriu mão da única pessoa que amava mesmo que significasse que ele continuaria sem amor, como sempre foi. Hoje em dia, vejo a história de novo e já acho completamente doentio. Ele é doente."
Rodrigo me respondeu que o fantasma, Erik, amou Christine da foma como ele conhecia ou entendia o amor: distorcido, exclusivo, obsessivo, egoísta. Achava que deveria ser um sentimento dele, e só pra ele, e que Christine só poderia viver em paz se significasse estar com ele - porque ele não estaria em paz sem ela. Nas cenas finais (alerta de spoiler), ele teve a única atitude de amor, o amor como ele é de verdade mesmo, para com Christine: deixou que ela fosse, mesmo que isso significasse sua própria solidão. Porque a felicidade e o bem-estar dela era mais importante que qualquer sentimento dele.
"Ele finalmente conseguiu ver que amor não era ter tudo dela pra si, mas deixar que ela fosse livre pra finalmente ser feliz."
Lembrei da noiva de Rodrigo. Lembrei que ele, sem sucesso, tentou deixá-la ir ao pensar que, longe dele, ela estaria melhor e eventualmente mais feliz. Lembrei de mim, e do que já deixei e ainda estou deixando ir, mesmo doendo, porque amo alguém ao ponto de colocar as vontades e necessidades dela acima das minhas próprias.
Não sei se Rodrigo sabe o impacto que nossas últimas conversas me causou. Talvez não, porque eu não cheguei a mencionar, e já vivi o suficiente pra compreender que as pessoas não tem como adivinhar o que você não fala. Mas acho que ele tem uma ideia. Fui abraçada, ganhei um beijinho em demonstração de afeto, e ouvi depois que eu tenho um amigo. E que podemos estar em barquinhos parecidos, mas se eu quiser despejar um pouco da minha água pra tentar não me afogar, eu posso jogar - pois não vai prejudicar o barquinho dele.
Queria dizer pra ele que entendo completamente o ponto de tudo isso, e a lição de moral foi entregue com sucesso - mas não significa que a dor de deixar ir seja menos pior. Honestamente, as últimas semanas, dias, e até meses, vêm sendo curvas altíssimas no meu gráfico, e provavelmente demorarão anos pra estabilizar. Nunca vai ser zero. O que não quer dizer que sempre ficarão no topo. Um dia, um belo dia, a curva vai descer, e a gente vai conseguir respirar de novo, e a dor da lembrança vai ter a mesma intensidade do tapa no ombro que Rodrigo me deu e não doeu.
Perdi muitas coisas, deixei outras irem, mas seja lá o que aconteça no final desse período de desintoxicação emocional pelo qual estou passando, sigo feliz sabendo que sempre terá um Rodrigo. Uma Giovanna. Uma Vitória. Uma Gabriela. Uma Mariana. Um João. Uma Julia. Uma Isabelle e uma Nathalia. Sempre vai ter alguém. E mais alguém.
Este post de forma alguma apoia relacionamentos abusivos em que um Phantom justifica suas atitudes falando que "nunca conheceu amor pra saber como reproduzir de maneira correta". Se ele tenta matar seu namorado ou te mantem em cárcere privado, por favor denuncie.