a história que eu nunca contei (e o que tirar dela)
(esse texto pode conter gatilhos)
É difícil falar ao certo quando eu comecei a me sentir infeliz.
Minha primeira memória de um ataque de ansiedade volta pra quando eu tinha 5 anos, talvez até menos, e comecei a chorar sozinha por toda a agonia, medo e aflição que eu tava sentindo. Quando minha mãe me achou do lado de fora de casa e perguntou o que tava acontecendo, lembro de responder que tava com medo de ir pro inferno quando morresse.
Minha mãe sempre foi muito religiosa e sempre me incentivou a fazer o mesmo. Faltar igreja em dia de domingo era inadmissível e só acontecia em casos graves de doença ou viagem (e olha que mesmo assim ela procurava outra igreja pra ir na cidade em que estávamos). É no mínimo interessante pensar que algo que supostamente deveria me ajudar espiritualmente é a primeira coisa que tenho memória de me causar um medo irracional e de me fazer sentir que, se eu errasse nessa vida, nem Deus iria me perdoar. E o inferno nunca me pareceu um bom lugar pra se estar.
Eu fui crescendo e passei de medo irracional a medo generalizado. Não podia decepcionar minha mãe, ela era o único companheirismo real que eu conhecia. Não podia decepcionar minha avó, que iria culpar minha mãe por não ter me educado direito, porque na época dela "as coisas eram diferentes". Não podia decepcionar meu pai, com quem eu nem tinha um contato tão grande na época, só o encontrando em aniversário e dia dos pais. Nem o resto da minha família, nem os poucos três amigos que eu tinha (as outras crianças diziam que eu era "gorda demais" pra andar com elas), e nem Deus. Eu fui me construindo num pensamento absurdo de que não podia errar de jeito nenhum. Errar decepcionaria pessoas com quem eu me importava e que esperavam de mim o melhor. Errar me fazia sentir pequena demais. Errar levava pro inferno.
Era quase impossível não ter desenvolvido ansiedade crescendo como eu cresci, e eu não culpo ninguém por isso. De certa forma eu mesma construí o caminho que me trouxe até aqui, eu mesma me prejudiquei. E olhando pra trás, não lembro de nenhum momento da minha vida que me senti tranquila ou em paz, ou que a resposta pra "você é feliz?" fosse instantaneamente sim. Foram anos me escondendo com medo de ouvir humilhações públicas pelo meu peso, pelo meu cabelo que era bagunçado demais, pelos meus dentes que não tinham alinhamento nenhum. Noites sem dormir direito porque alguma criança com muito ódio no coração dizia na escola que ia me matar e matar minha mãe também. Anos ouvido que meu pai nunca se importaria comigo como minha mãe se importava. Que eu não podia comer isso, nem aquilo, nem colocar ketchup naquela pizza porque já tava "gordinha demais". Que alisar o cabelo era necessário a cada 6 meses se eu quisesse que ele ficasse bonito. Foram anos ouvindo demais, e sentindo demais, e sem saber o que fazer com tudo isso, só deixando pra lá.
Deixar pra lá sempre foi minha reação #1, uma vez que eu não sabia muito como falar sobre as preocupações de tirar o ar que eu tinha em relação a tudo, porque ninguém entendia ou veria isso como uma criança tendo que lidar com ansiedade logo cedo. Ou era drama infantil ou era algo que diziam "é assim mesmo", como se fosse normal ter que lidar com isso porque "faz parte" da experiência social de qualquer pessoa que tá crescendo e conhecendo o mundo. Isso me deixou tão ruim em lidar com minhas próprias emoções que quando minha avó morreu, avó essa que morava comigo e com quem tive contato todos os dias até os 7 anos de idade, minha primeira reação foi rir. Eu ri porque achei engraçado todo mundo começando a chorar automaticamente, porque até então eu não conhecia o choro dolorido. Eu só conhecia a dor, que enfiaram na minha cabeça como sendo algo "necessário" ou que "não dava pra fazer nada a respeito". Quando você reprime muita coisa, você desconhece o choro de desespero que quer deixar os sentimentos saírem. Então eu ri, e meu primo mais velho virou pra mim com uma cara incrédula, e mesmo não lembrando as exatas palavras dele, eu lembro exatamente a cara de indignação. "Por que tu tá rindo? A vovó morreu." Fiquei tão envergonhada que não respondi, só fui pro quarto fazer dever de casa. O funeral da minha avó foi na nossa casa. Foram horas com muita gente entrando e saindo numa casa que antes eram apenas três mulheres, avó, mãe e filha. Vi minha avó sendo velada e enterrada e não derramei uma lágrima.
O que eu não chorei quando criança eu chorei na pré-adolescência. Ao ponto de chorar durante as aulas e amigos virarem pra mim e perguntarem, meio sem paciência: "É serio? De novo?". Provavelmente foi resultado daquele ditado que fala que guardar muita coisa uma hora te faz explodir porque não tem mais espaço. Eu ainda não tinha consciência da minha própria ansiedade na época, e no quão incapacitante ela era. Na minha cabeça eu só era estranha e fracassada demais porque não conseguia nem queria fazer o que todo mundo da minha idade perto de mim tava fazendo. Eu não queria ir pras festinhas e dar o primeiro beijo com um menino aleatório e falar sobre isso com todo mundo segunda de manhã. Acho que nem era muita questão de "não querer", e mais de sentir que não me encaixava ali, ou em lugar nenhum, e não conseguir nem tentar. Eu era o típico cliché americano que vivia com a cara enfiada num livro young-adult durante as aulas e intervalos, tinha um grupinho de 2 amigos que ninguém entendia também, e, ao contrário de todos os filmes com essa premissa, nunca teve nenhum acontecimento ao longo da minha vida que me transferisse de awkward pra cool.
Quando minha mãe engravidou, o drama da filha única pré-adolescente passou disso pra ansiedade descontrolada. Eu tinha raiva da minha mãe por ter engravidado, eu tinha raiva da minha irmã (que eu inclusive chamei de feto por meses já que não me referia à ela como um ser com vida), eu egoistamente tinha raiva do universo inteiro que me deu uma mudança gigantesca dessas pra lidar quando eu mal conseguia digerir a mínima mudança de rotina nos meus dias sem surtar completamente. Escrevi uma carta de 5 folhas frente e verso pra minha mãe, explicando que não me sentia feliz, não fazia ideia de como era felicidade, e em como ela não me dava mais atenção ou carinho e isso me fazia sentir mais sozinha e incompreendida do que sempre fui. Nunca entreguei a carta. Foi nesse período que lembro de pensar pela primeira vez que eu era infeliz e que nunca conheceria a tal da felicidade de verdade, porque não conseguia sentir nada além de frustração. Descontei tudo isso em comida, e entrei num ciclo de comer bem mais que o necessário pra me sentir melhor (ou sentir qualquer outra coisa que não fosse o que eu sentia), sabendo que horas depois isso só ia me deixar mais miserável ao olhar no espelho e lembrar que ninguém se enturmava comigo ou me permitia brincar pelo pátio da escola porque eu era gorda.
Quando minha irmã nasceu, nem tudo mudou, mas minhas perspectiva era outra. Éramos de novo três em casa, mãe, filha e filha, e eu já não tinha problema em dividir minha figura materna ou brincar de ser uma eu mesma. Mas o sentimento de não conseguir me encaixar em lugar nenhum, de não acompanhar o que agora quase-que-propriamente-dito-adolescentes faziam, e de nunca entender nada disso, sempre ficou. Lembro de fazer um post gigantesco num Tumblr privado por senha sobre tudo que tava acontecendo, e sobre me sentir assim, e sobre tratar as pessoas mal porque não sabia lidar com isso e depois ficar pior ainda por ter descontado em alguém. Foi um post quase que como esse, só que aos 13 anos de idade, quando eu achei que minha vida inteira tava desmoronando depois de me apaixonar desesperadamente pela primeira vez e ver tudo dando errado e ter sofrimento que nenhuma pessoa aos 13 anos deveria ter tanto pela falta de maturidade e nível de peso emocional envolvido. Era um desabafo escrito tão grande que hoje eu só lembro de uma frase. Provando as voltas que o mundo dá, a frase dizia: "eu só me sinto feliz de verdade quando chego em casa e vejo minha irmã". Eu só mandei o link desse Tumblr junto com a senha pra uma pessoa. Uma. A gente só falou sobre isso, e em como meu texto deixava claro que eu não queria continuar vivendo, não por um só aspecto da minha vida mas por ela como um todo, uma única vez.
Eu lidei com essa entrada genial na adolescência (uma desilusão não só amorosa como pessoal, sem padrasto, vendo um divórcio de perto, e com uma irmã menor pra ajudar a cuidar) da única forma que meu eu de 2011 saberia lidar: ouvindo o álbum Unbroken da Demi Lovato. Foi quando eu comecei a prestar atenção na existência de depressão, e transtornos psicológicos em geral, só porque tinha alguém que eu gostava falando sobre. Mas nunca achei que fosse meu caso, ou que eu me enquadrasse em algo, já que sempre pareceu ser uma situação séria demais e eu me considerava um nada que nem direito de estar mentalmente doente tinha.
Hoje, depois de ter chegado no fundo do poço ao ponto que tiveram que fazer uma intervenção e me ajudar porque eu já não conseguia mais pedir ajuda, eu tenho não só um diagnóstico, mas dois. Tenho que lidar com uma ansiedade incapacitante e um quadro depressivo que esteve comigo por tanto tempo que já não sei quem eu sou sem as duas brigando pra saber quem vai me foder mais. A nível de curiosidade, depressão e ansiedade às vezes aparecem juntas mas em mundo nenhum as duas são amigonas que cooperam uma com a outra, muito pelo contrário. Não tem nada de cooperação ou amizade nisso. Eu sempre tive uma ideia do que eu tinha, depois de aceitar que não era normal se sentir como eu me sentia todos os dias da minha vida, mesmo com amigos me cobrando um diagnóstico porque aparentemente eu precisava de um pra provar que meu sofrimento era real e não frescura ou drama meu.
Então tá aqui pra quem sempre me cobrou um diagnóstico propriamente dito, que nunca me entendeu, que achava que eu era a própria personificação de uma drama queen quando chorava na escola todos os dias: meu nome é Denise Aquino, eu tenho ansiedade generalizada e depressão. E aqui é um pouco da minha história tendo que lidar com elas. Foram anos moldando quem eu sou hoje, e me dando experiência pra aguentar o trampo até não conseguir mais, mas isso tudo tá bem, bem longe de definir quem eu sou, porque eu sou muito mais que isso.
Meu ponto aqui não é procurar escancarar meus conflitos numa tentativa de obrigar alguém a refletir "meu Deus, quanto sofrimento essa menina". É só relatar mesmo; e tentar mostrar na prática que às vezes parece que acabou e você não tem mais de onde tirar forças e parece que não tem ninguém contigo. E você continua. E vai de novo, e de novo, e de novo. Empurrar tudo com a barriga é útil até que dói porque o peso tá demais e já faz tempo que você se esforça. Meu ponto é mostrar que mesmo com um total de 19 anos só conseguindo lembrar de coisas ruins e traumáticas pra ilustrar a própria história, ainda tem outros incontáveis anos pela frente em que não precisa ser assim. Eu tô me medicando, mas anti-depressivo não é milagre. É um trabalho muito mais difícil do que lembrar de tomar um comprimido toda noite. É tentar se encontrar todos os dias mesmo que o seu eu controlado e moldado por uma doença pareça maior. É enfrentar os próprios medos todo dia. É treinar se lembrar a cada minuto que não, você não é um fardo e nem um desperdício de matéria no universo.
Eu quis escrever essa letter porque tive que falar meu diagnóstico em voz alta várias vezes esse último mês: pros meus pais, pra médicos, pra amigos mais chegados. E sempre pareceu que eu tinha que sentir vergonha por isso. E eu realmente sentia, ao ter que tomar remédio em público e me perguntarem pra que era, ou tendo que falar sobre minha consulta na psiquiatra em voz alta em público por estar no telefone, ou não conseguindo explicar pra fisioterapeuta que não podia ir pro pilates naquele dia porque tinha terapia. Eu nunca consegui, sempre tinha algo me prendendo. E eu comecei a pensar, por que? Do que exatamente eu tenho que ter vergonha? Eu não tenho algo vergonhoso, eu tenho uma doença. E eu tô recebendo ajuda por ela. Não tem nada de feio aí. Feio foram as mãos que não me estenderam, os olhares que não viraram pra mim, e as cabeças que não entenderam.
Eu tenho 19 anos e nunca senti que me conheciam de verdade. Porque nem eu me conheço de verdade ainda. Eu sou um trabalho em progresso. Eu sei quem eu sou hoje, mas não tenho ideia de quem eu posso vir a ser num futuro próximo quando eu voltar a ter controle de mim mesma, e das minhas emoções, e da minha personalidade e força de vontade. E sinceramente? Meu medo irracional de ir pro inferno por ser uma pessoa ruim já não me assusta tanto. Eu passei pelo meu próprio inferno pessoal em vida mesmo, e me senti presa nele por muito tempo, mas agora finalmente parece que eu posso dar o primeiro passo pra sair e encontrar quem eu posso ser fora disso tudo.
E eu mal posso esperar pra conhecê-la.
E se essa é uma verdade que eu consigo aceitar, por terem me oferecido outro ponto de vista pra essa situação toda, é algo que você também consegue. Então um girassol pra todos que já se sentiram uma aberração, que não conseguem se entender, que sofrem com pensamentos negativos sem controle, que se autodepreciam, que lutam com síndrome do impostor, não aceitam o próprio corpo, lutam com ansiedade, depressão, que sentem que não podem amar outra pessoa sem sentir medo do que vão falar, de serem ridicularizados, expulsos de casa, ou que não vão ser aceitos por isso. Que ouviram na escola que deveriam morrer só por serem quem são. Aos que nunca se sentiram amados na mesma intensidade que amaram. Aos que não se sentem prioridade de ninguém. Aos que sofrem em silêncio. E aos que sofrem alto também.
Don't give up hope. Ever. Hoje pelo menos você é você, e isso é o suficiente. 💛
até a próxima,
🌻