Neil Gaiman me deve uma sessão de terapia
Dentro dos n debates que tive nas últimas semanas sobre n assuntos, um ponto parecia sempre voltar à tona: a ideia de que todo mundo é horrível. Sei que não tenho muita credibilidade, mas isso tá longe de ser um reflexo do meu péssimo tratamento comigo mesma, ou pouca fé no resto do mundo. Pelo contrário, ser dura comigo nunca tirou minha mania de tentar achar que todo o resto do mundo estava pelo menos tentando seu melhor. Conversei muito nos últimos dias e, fosse discutindo sobre como a gente se acha uma bosta inútil, fosse debatendo sobre pessoas que realmente são bostas inúteis (ao meu ver), eu sempre batia na mesma tecla: todo. mundo. é. horrível.
A primeira vez que parei pra pensar nisso de verdade foi quando vi uma resposta do Neil Gaiman no Tumblr falando exatamente a mesma coisa. "Querido Neil, eu sou uma pessoa horrível. Como eu posso ser mais gentil?", a pessoa perguntava. As respostas do Neil são bem íntimas e específicas, ao ponto que, obviamente, tem uma diferença ao digerir as palavras dele em narrativa e as que ele escolheu compartilhar diretamente sobre o que pensa. Nessa em específico, Neil responde que às vezes suspeita que a gente é tudo horrível mesmo. Ou que somos humanos, o que pra ele é a mesma coisa. "We are impatient, judgmental, irritating and irritated, grumpy, easily offended and the rest of it." E esses foram só os defeitos que ele nomeou. Imagina se eu coloco a minha lista. E você a sua. E eu a lista de todas as problemáticas de todo mundo que tenho ranço. O que me leva de volta à minha própria problemática de sentir ranço sem motivo aparente e ficar me perguntando qual é o meu problema.
A gente é insuportável pra caralho. A gente que reclama e a galera sobre quem a gente tá reclamando também. Absolutamente ninguém se salva.
A solução do Neil Gaiman pra isso (uma que eu, na minha ignorância, não tinha conseguido achar sozinha) é só fingir mesmo. Porque, seguindo essa lógica e parando pra pensar, não teria diferença você fazer o bem porque é o santo na terra e ama ajudar todo mundo e fazer o bem sendo o diabo tentando disfarçar: no final das contas, você ainda tá fazendo o bem. E ainda tá tocando a vida das pessoas positivamente. Quase que um "os fins justificam os meios" bem torto e muito fora de contexto, tão fora de contexto que se eu tentar o suficiente aparece um estudante de Direito gritando "MAS NÃO FOI ISSO QUE MAQUIAVEL QUIS DIZER!!!!11!!11". Essa sou eu tentando. Por favor, por favor, estudante de Direito. Grite comigo.
Mas e a intenção? E o 💞 coração 💞 e pura vontade da pessoa por trás das ações dela? Coisas que eu e provavelmente qualquer personagem de um filme da Disney já se questionou. Como poderia ser a mesma coisa, e será que, pelo amor de Deus, o Neil Gaiman poderia me responder?
Por um momento eu achei um absurdo, numa resposta tão pequena, todo mundo ser jogado no mesmo saco e ser equiparado à lixo. Tudo bem que eu concordava que todo mundo era um lixo, mas tinha a pessoa que mandou a pergunta, sensível o suficiente pra pedir uma ajuda porque queria tentar melhorar no que ela achava estar falhando, e tinha as pessoas que realmente eram impacientes, críticas, irritantes, irritadas, mal-humoradas e que se ofendiam facilmente. Tinha eu e tinha as pessoas que conseguiam ser piores do que eu. Todo mundo virava a mesma farinha no final? Não tinha nada pra medir? Eu sou chata pra caralho, mas, veja bem, acho que a moral duvidosa das pessoas que tenho ranço é algo a se levar em consideração.
No entanto, eu mencionei que a resposta dele era pequena. Não demorou mais do que esse debate interno pra fazer sentido.
Não sei se vocês sabem no que consiste, mas MBTI é um teste de personalidade e o único desse estilo que vocês vão me ver seguindo piamente de tão certo que deu comigo. De acordo com ele eu sou INFJ, e depois de muito ler sobre, descobri que é o tipo que mais sente empatia por todo fucking mundo. Conheço gente que não acredita em empatia, também conheço quem deteste o termo e o significado que comumente atribuíram, mas nesse caso sempre foi como uma empatia-esponja. Eu tentava sentir tudo que o outro tava sentindo porque me colocava no lugar dele demais. Isso sempre me levou a achar que as pessoas eram naturalmente boas (a sociedade que as corrompem) simplesmente porque elas tinham capacidade de sentir, e eu sentia por elas.
E deixa eu falar: procurar o lado bom de todo mundo, toda hora, é exaustivo. Principalmente quando você é esponja.
Esbarrar com essa resposta do Neil, que não chega nem a ser um texto sobre, me iluminou bastante em relação a isso. Foi como se ele tivesse pegado no meu ombro pra falar: não, meu anjo, todo mundo é horrível mesmo. A gente é cruel com a gente e com os outros. A diferença é que meu filtro é melhor do que o filtro das pessoas que eu detesto. Eu sei fingir melhor que sou uma boa pessoa, nos meus padrões de como-uma-boa-pessoa-deveria-ser. Na minha cabeça eu continuo sendo uma bosta, sem dúvidas. E talvez na cabeça deles, eles sejam incríveis porque eles tão no próprio padrão de como-uma-boa-pessoa-deveria-ser. Que não necessariamente é o meu padrão.
E é aí que eu fico o thinking emoji 🤔 e real queria sentar com o Neil Gaiman pra conversar sobre isso. Parece que eu tô criando justificativas pra falar "mas todo mundo tá no seu direito de ser horrível já que ninguém é igual!!!!" porque é isso que sempre faço. Não consigo simplesmente falar "você é uma bosta, muita paz." Desde que me entendo por gente, me considero uma pessoa em cima do muro. Tento dar voz pros dois lados, não porque os dois estejam certos, mas porque os dois merecem falar. Me pedir conselho é horrível porque eu vou te ajudar, mas também vou falar "por outro lado, você não sabe o que se passa com a pessoa x-". Parece que eu tô sempre mediando as coisas.
Mas eu disse que entendi o que a resposta quis dizer, e se é que consigo estar certa pelo menos uma vez na vida, que seja agora: não é questão de "todo mundo é bom" ou "todo mundo é horrível". Nunca gostei dos extremos (personalidade mediadora, MBTI tipo: advogado), não passaria a gostar agora. É o simples fato de que a gente pode ser bom. Mas a gente também pode ser ruim. E que, pra resumir tudo, a gente é uma mistura dos dois. Absolutamente todo mundo. Isso é natureza humana mesmo. A gente é um lixo, e sente ranço de quem quer que seja, mas a gente também tem empatia - ou simpatia, seja lá o que te deixe mais confortável. A gente abre a boca pra fazer comentários críticos mas tem uma consciência pra pesar depois. Toda a experiência em ser humano é viver e fazer coisas boas e ruins e isso é inevitável.
Como você escolhe lidar e filtrar essas experiências, as boas e as ruins, e como você permite que elas te moldem como pessoa, aí sim: é caráter mesmo, e a gente tem sim um controle nisso. É pessoal. Os atributos que o Neil citou pra exemplificar as "pessoas horríveis" que somos, são características que naturalmente vamos ter. O que a gente escolhe fazer com isso diz sobre quem somos.
Em uma das conversas que tive sobre isso, expondo sobre como as pessoas são, na verdade, ruins, e a gente custa em aceitar, minha amiga Ingred me enviou aquela cena de Doctor Who que eles discutem o fato do Van Gogh ter cometido suicídio mesmo depois de ter visto o "lado bom" da própria vida que, em sua história original, ele não teve conhecimento. A fala é basicamente sobre como a gente sempre vai ser um amontoado de coisas boas e ruins. As coisas boas não vão suavizar as ruins mas as ruins também não vão fazer com que as boas fiquem menos importantes. Esse momento sempre foi tão especificamente Van Gogh (e eu juro que não é minha intenção mencionar arte ou artistas em todas as newsletters, quando dou por mim já aconteceu) que nunca me toquei que é a gente também. Não é só sobre ele, suas dores, traumas e problemas. É também sobre a gente, tendo que lidar com nossa pilha de coisas boas e ruins e tendo que decidir o que fazer com elas.
Doctor Who também me fez parar pra refletir sobre isso quando me falou que todo mundo muda e que a gente consegue ser várias péssimas durante nossa vida e que tá tudo bem, a gente tem que continuar mudando mesmo, desde que não esqueçamos todas as pessoas que um dia já fomos. Boas ou ruins. Se esse não for o melhor modo de observar e aprender dentro do nosso próprio crescimento, eu não sei qual é.
(E aqui é só uma menção honrosa mesmo, COM SPOILERS, porque achei cabível e não podia ignorar, mas é só pra quem viu a nona temporada de Doctor Who - e juro que não era minha intenção falar tanto de Doctor Who nessa newsletter, mas confessando que essa cena em si já me fisgou pra fazer uma só sobre ela: a Missy e o Master se despedindo é a coisa mais poética que eu já vi. É a mesma pessoa, em pontos diferentes da própria vida, e ambos continuam sendo horríveis mas em circunstâncias distintas, com balanças emotivas distintas. "Eu adorei ser você", ela diz, mesmo que o "você" em questão tenha sido um genocida paranoico com princípios que já não fazem mais sentido para o que ela agora acredita. "Cada segundo." Porque mesmo que não combinem mais, ainda foi ela, sentimentos que ela um dia teve, e ela honra isso. Mesmo tentando ser uma boa, nova pessoa, ela assume quem um dia terrivelmente já foi. E isso fala muito da nova pessoa que ela tenta ser, matando, literalmente, a antiga.)
Foi irônico pensar em escrever isso e parar pra assistir The Good Place no mesmo final de semana. Sem fazer resenha da série ou entregar o plot, não tinha nada que eu pudesse assistir que fosse me obrigar a refletir mais sobre pessoas boas x pessoas ruins e em como a linha entre esses dois conceitos é bem tênue, mesmo que de início não pareça. E olha que a série é de comédia. Me fez notar que, quando é sobre a gente, nada é tão simples. Já dizia a Selena Gomez na música de abertura de Os Feiticeiros de Waverly Place que "nem tudo é o que parece ser" e a Rachel Bloom na abertura de outra série, sendo essa uma metáfora da minha vida, "the situation's a lot more nuanced than that".
The Good Place* me fez pensar sobre os requisitos pra ser uma boa pessoa e em como essa boa pessoa poderia se encaixar facilmente no perfil de pessoa ruim se você escolhesse analisar a situação por outro ângulo. E se isso não exemplifica tudo que eu falei até agora, vai pelo menos parecer que tô andando em círculos no mesmo lugar, porque é basicamente a mesma coisa.
Quanto a mim, a você, e a todo mundo que sentiu um #relatable quando mencionei "os que se sentem um lixo": A gente não se sente um lixo porque a gente é. Isso já não é parte da nossa natureza humana, ou caráter, e sim da parte psicológica mesmo. Mas aí é assunto pra outro dia.
Se não consegui aceitar ou compreender ainda nossa complexidade e as diversas formas, boas e ruins, de lidar com elas - e, sério, acredito que daí que vem as diferenças entre As Pessoas TM que a gente coloca na lista de PESSOAS MUITO TERRÍVEIS e PESSOAS MUITO BOAS -, pelo menos já consegui absorver que sou média. Sou uma pessoa nível médio. Um 7 no meio social. E que seja, tá tudo bem também. Eu aceito ser uma pessoa média.
(*The Good Place também me fez pensar muito sobre vida, morte, e o que vem depois, que é um assunto que geralmente costumo evitar. Mas, vendo a série, é retratado de forma tão leve que fiquei até surpresa de não ter tido um ataque de ansiedade em nenhum dos episódios. Well done.)