das vezes que vivi na sua sombra

há uma garota - vamos chamá-la de diana. diana tentava ser a melhor em tudo mas só produzia mediocridade (ou assim me dizia). não aceitava, porém, que o resto do mundo concordasse com ela. exceto em todos os outros momentos em que exigia ser a única a receber totalidade de concordância. de regra: tinha que estar certa todo o tempo, mas não quando sabia estar certa sobre si mesma. "tá tudo bem com a auto depreciação desde que ninguém concorde comigo", ela dizia. e ai de quem não concordasse com diana. nessa dança foram um, três, talvez cinco amigos e conhecidos que desistiram de tentar entendê-la - sem saber que, na desistência de tentar entender, foram os que mais chegaram perto de fazê-lo.  

ensaiava toda fala, calculava todo tato, escrevia diversas rimas, fazia tudo na exata perfeição exigida a uma figura pública sem de fato ser uma. na verdade, era reservada. demasiadamente reservada. numa dessas, como uma de suas contradições, chamou isso de seu privilégio e sua sina. tudo era para um público, mas não havia público. e que bom que não havia. mas que droga que não havia. alguns dias acordava sendo sol, alguns dias acordava sendo lua, e assim ia, de dia em dia e de humor em humor, variando como o céu variava de laranja a azul, da manhã ao anoitecer, ou como a água troca de forma conforme o ambiente. se moldava com muita destreza ao ambiente que era inserida, quase que maquiavelicamente, esperando ser exatamente o que queriam que ela fosse e, ao mesmo tempo, nada do que esperavam. era rio para os doces e mar para os ácidos, fria para os invernos e quente para os ensolarados. não fazia de propósito, simplesmente era. se moldava aos requisitos ao seu redor de forma a ser sempre aceita, sempre apreciada.

e então passava. aquela autenticidade calculada cansava. se entediava muito fácil, a diana. e quando acontecia, e sempre acontecia, formava um casulo em volta de si ao passo que já planejava, em silêncio, qual seria sua próxima pele. e aí surgia outra. e outra. e outra. e outra. e não paravam de surgir, porque pessoas não param de aparecer e situações novas não param de se formalizar. até que abusava do seu próprio eu, das pessoas, dos ambientes, e fazia de novo.

não diria que diana tinha múltiplas personalidades, muito menos que manipulava todos ao seu redor por bel prazer. todas essas metamorfoses eram, de fato, ela mesma. nunca algo inventado. ela. e eram vários, diversos, infinitos pedaços dela. consigo ver como uma dádiva o que muitas vezes viam como maldição, essa mudança constante dela. mas toda dádiva tem um preço, um porém, uma ressalva. a dela se materializava na queixa que sempre fazia, não importa em que fase estivesse: não me conhecem de verdade. não entendem. ninguém, nunca.

"como, diana?" cheguei a perguntar uma vez, esperando que me explicasse, como sempre fez. esperando que me olhasse nos olhos com afeto e compreensão, aquele afeto que marcava o começo dos seus vínculos com qualquer pessoa disposta a encará-la, e me falasse o que eu não havia entendido e ela, como de praxe, sim. 

vi o olhar, o afeto e a compressão. mas não falou. tempos depois entendi que era parte do processo. eu deveria entender sozinha, pois, caso houvesse me explicado antes, teria provado seu ponto. "não entendem".

pensando nos motivos pelos quais eu não poderia entender, ironicamente, entendi. entendi que diana sentia não a conhecerem porque, ao se mutilar tantas vezes em partes tão pequenas para se recriar de novo e de novo, não conseguia oferecer pedaços grandes de si. eram todos ela, sim, toda vez  - sempre pedaços dela e dela somente -, mas era só isso que eram. pedaços. pedacinhos que ela criava de si, analisava, escolhia pessoas, vidas, vivências para se encaixar. mas quando encaixava, sempre entristecia com a dúvida se celebrava por ter sido aceita ou se sofria por ter sido só um pedaço aceita. 

adaptava-se a tudo e todos e, ao final do dia, sentia remorso por não ser o suficiente como inteira. ou talvez por ser demais como inteira. picotava-se para estar em todos os lugares mas, como descobri tempos depois, não estava completa em lugar algum. 

nesse dia entendi que talvez todos os outros estivessem certos. talvez não fosse uma dádiva, no final das contas. 

não consegui contar minha conclusão à diana. não consegui dizer que havia entendido. que havia a entendido. 

a perdi de vista e, tanto tempo depois, a perdi também de memória. sua presença foi diminuindo, e diminuindo, e diminuindo. nesse processo - o que eu desconfiava ser seu processo casulo -, vi diana duas vezes: a primeira num jantar com champagne demasiado, grandes vestidos, ternos caros e luzes brilhosas; a segunda, num banco à sombra, com uma revista qualquer no colo, acompanhada apenas de um copo descartável vazio. diana, que eu conheci como sendo mais brilhante que as luzes e mais alta que o champagne, parecia morta na primeira e extremamente viva na segunda. 

quando tive minha conclusão, diana já nem era mais minha diana que longos vestidos verdes e morangos mergulhados na champagne.

mas eu a vi. a compreendi. me pergunto se mudaria algo, caso ela soubesse disso. me pergunto se ela pensaria diferente sobre si se soubesse que eu entendi. 

até hoje me pergunto que forma diana está exercendo agora. que vida, que personalidade, que vivências, que peculiaridades... surpresa, me dou conta de que sei de todas. conheço todas que assumiu até então. tenho teorias sobre quais deve estar assumindo. 

com o tempo, percebi que foquei-me tanto em entender diana que esqueci de mim. relevei que talvez ela não me entendesse. no fim, eu não seria nada mais que uma história antiga pra ela, uma vez que nem a deixou curiosa, nem a instigou a desvendar.

descobri que, no final das contas, eu também não sabia quem eu era. mas sabia quem era diana.

como um mantra, repeti as palavras que me trouxeram até aqui: não me conhecem. não entendem. ninguém. nunca.

e bem assim, bem aí, me senti partir em mil pedacinhos, prestes a entregar o primeiro deles a quem primeiro conseguisse-me encaixar.
 



01/? dos escritos jamais publicados.

oi, de novo. :)

com todo o amor de sempre, 
deni